(#2 da saga)
Ela não me via. Acredito que fingia não me ver. Algo em mim e em meu irmão a irritava. Ir para aquela casa, lá dormir, lá comer, lá respirar pó e maldade era o purgatório, mas não tínhamos opção, meu irmão, minha mãe e eu. Eu andava pela casa evitando me encostar nas paredes, nas janelas, nas mesas, tinha medo. A menina, a filha da vizinha, passava boa parte do dia lá. Ela e a menina eram amigas e a menina aprendeu a pegar na xícara levantando o dedo mindinho. Na nossa mão direita, ela pegava, quando chegávamos, com as pontinhas do dedo, bem de leve, toque de barata. A menina e ela conversavam cochichando, eu ouvia ao longe, vozes sumidas, saindo dos quartos proibidos. Creio que ela ensinava a menina a fumar cigarro mentolado. Fino, elegante.
Eu não me lembro bem, a minha memória se perdeu naquela casa, antes que ela tombasse ao chão depois de uma devastadora enchente. Mas eu recordo sons, luzes, vozes e ventos silenciosos. Eu me recordo de que ela não tinha sangue de barata correndo nas veias, de barata apenas os cumprimentos flácidos. Dedos leves, frios, nojentos, tocando minha mão de leve. Eu recordo, Conceição lavando panelas na bica. Conceição esfregava as panelas de alumínio com areia branca, polia, esfregava, enxaguava, até que elas brilhassem feito espelho, enfileiradas na grama, por sobre as pedras ao redor, brilhando de doer os olhos.
Eu me recordo da espingarda e da vara de marmelo penduradas na parede. Qual parede? De qual cômodo? Não sei, não me lembro. Meu irmão deve se lembrar, ele é mais velho que eu. Recordo as palavras, o dedo pequeno apontando para o alto. A ameaça. Meu irmão e eu evitávamos então o contato, o estar próximo. Ameaças. Ameaças.
A menina, filha da vizinha, fazia candonga. A menina gostava de ver o circo pegar fogo. A menina gostava de ver o quanto era estimada por ela. Um dia, ela veio atrás de nós, com a vara de marmelo em punho. A vara que corrigiu toda a família. A vara que não quebrava nunca, mesmo após várias chibatadas. Nós corremos, eu não corria, eu voava atrás do meu irmão. Eu o tinha, eu faria o que ele fizesse. Subimos o morro do santuário da casa do purgatório, o quintal. Mangueiras, ameixeiras, flores e mais flores, uma mata que beirava a estrada, lá em cima onde passava o córrego. Conceição viu quando passamos correndo. Acendeu o cigarro de palha e olhou para o céu. As panelas já estavam quase secas pelo Sol.
Subimos o morro e ela atirou. Sim, a morte sempre me rondou. Poucos anos antes, eu, por muito pouco, parei de respirar, de medo, diante de um homem com uma faca na cintura, perguntando por meu pai, dizendo que ia matá-lo. Mas, eu era muito criança, e na minha cabeça, quem ia morrer naquela hora era eu. Lembro-me da minha boca seca, meus olhos parados, fixos, lembro-me da cara dele, vermelha, e do cheiro de aguardente que saía daquela boca suja. A morte mantém um relacionamento comigo que nunca entendi. Hoje, penso se é de respeito, falta do que fazer ou atração por mim, ânsia de estar em minha companhia, sem contudo desejar me levar. Naquele dia, lá no alto do morro, ela atirou com a espingarda. Eu nunca soube se a distância estava a favor dela ou não. Eu nunca soube se ela tinha pontaria. Eu sei que ela trocou a vara de marmelo pela espingarda. Hoje, questiono-me sobre o que sei sobre uma arma apontada para mim. Hoje, já mulher, pois o ato, aqueles atos, perpetuaram-se na minha memória, acomodaram-se em minhas entranhas, fazem eu pensar que tudo pode acontecer por muito pouco.
Onde estaria a menina, a filha da vizinha, naqueles minutos? Rindo pelos cantos sujos da casa? Eu nunca saberei. Eu sei que gritávamos para ela parar e Conceição passou várias vezes por ela, carregando as panelas para dentro de casa. Não me lembro de mais nada. Com certeza, a minha mãe deve ter aparecido, deveria estar na rua, fazendo compras, visitando alguma amiga. Com certeza, a mata sagrada foi mais forte que ela, nos protegeu com seus troncos largos, com seus mistérios, seus sons. Com certeza, a morte pitava um cigarrinho de palha, divertindo-se com a audácia da outra.