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Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Enterro - Parte II



     Ana Marta foi ao funeral da prima. Jurou a si mesma que não acompanharia o enterro. Não lhe vinha bem a ideia de um corpo dentro de uma caixa, lançado ao fundo de um enorme buraco em que se verteria terra e mais terra e flores e lágrimas e depois tudo muito bem espalmado, apertado, sufocado, para sempre encravado no solo, no escuro do mundo sem ar. Ana Marta preferia ver cinzas voando pelos ares e olhos dirigidos ao alto, ao infinito, junto aos ventos e pássaros. A prima ficaria apenas para o velório de horas. Daquelas horas que ela sabia bem, não passavam nunca. Não que não quisesse estar ali prestando sua última homenagem à prima. Queria sim estar ali, e ali ficaria pelo tempo que fosse pela pessoa que um dia aquela morta foi.
     Desceu do carro e também deu passos que pareciam não progredir. Lembrou-se das outras mortes pelas quais chorou. Lembrou-se que era sempre assim: passos sem força. Como se o caminhar não rendesse. Viu grupos de pessoas, sentadas, em pé, encostadas, paradas, que falavam, que calavam, que choravam e riam. Viu gente andando só. Sentiu um incômodo na garganta, sensação de ar que entra pelas narinas gelado e rápido e que desce para a garganta ardendo. Como se tivesse corrido um pouco. Passou de cabeça baixa, não queria cumprimentar ninguém. A homenagem ela prestava somente à morta. Aquela não era a parentela dos seus sonhos. Estava ali por causa da morta e da mãe da morta.
     Primeiro viu a velha, de cabelinho branco, muito digna em um vestido também branco com flores cinzas, um xale nos ombros e pó de arroz no rosto sem marcas de lágrimas. Uma mulher em gris. Morna. Impermeável. Diferente de toda a gente que em volta perambulava: colorida ou negra com seus óculos escuros. A velha não precisava de óculos, não tinha nada a esconder, nem nada a revelar. Apenas, às vezes, sentia um pouco de raiva, uma impaciência. Confessara à sobrinha, um pouco mais tarde, quando puderam trocar confidências rápidas e sussurradas, não suportava aqueles apertos fortes na cabeça, pois sim, com as duas mãos apertavam seu crânio e diziam que o sofrimento era mesmo enorme, que grande tragédia!, que grande tristeza!, uma perda irreparável... e a senhora, como está? está boazinha? está suportando?está se sentindo bem? está se sentindo mal? precisa de alguma coisa? " E desgrenham a minha cabeleira que custei a pôr nos moldes e olha Ana, meu cabelo está penteado? ". Sentada numa cadeira próxima ao ataúde parecia alheia à morte ou quem sabe travando a luta do quem pode mais.
     Depois viu o caixão com uma foto em cima. Um terço. Um buquê de orquídeas brancas. Por todos os lados medalhões da vida para a morte. Brancos. Amarelos. Última homenagem de quem ficou para continuar a vida a quem se foi e deixou um enorme vazio. Ana Marta cumprimentou em silêncio a prima que não se podia ver. Tentou umas Ave-Marias, um Pai Nosso, não conseguiu, se perdia desconcentrada na oração. Ia pensando em outras coisas enquanto rezava uma reza em pedaços e se perdia nela, então desistiu. Preferiu por fim pedir aos céus que o espírito dela ficasse em paz e agradecia a docilidade constantemente destilada a todos e, principalmente, a ela. Melhor não poder ver morto o rosto, melhor assim, ficaria na memória apenas a moça sorridente, de fala mansa e andar de garça. Sentiu novamente o ar frio pelas narinas. Os mortos passados rondaram-lhe às costas, arrepiou-se toda, sentiu as costelas se dilatarem dentro do peito, dando espaço ao volume de ar que crescia por dentro, golfadas internas de ar sem saída a esquentar o pescoço, subir pelo nariz, um ardor. Pensou na possibilidade de chorar ali todas as mortes já choradas e curadas, mas deteve-se. Não queria lágrimas. Não queria sentir muito. Melhor matar na raiz. Distrair o pensamento.
     Voltou-se para a tia encolhida, sentada na cadeira, calada, como todas as outras mães que se encolhem diante dos filhos mortos, feito galinha que choca o ovo, mas que não vai chocar, mas choca assim mesmo. Por que é sempre assim, meu Deus, que as mães ficam? Encolhidas dentro delas mesmas, os braços enlaçando o ventre. Respiração lenta, guardada; entrecortada. Gestos paralisados. Olhos que quando vagam, vagam lentos, passivos. Dali do lado do caixão, mães que perdem filho não se levantam para nada, nem para fazer xixi. Nem para o Papa. Todas assim, grande galinha pequena e encurvada a esperar o tempo certo, solitário e longo, eterno? para lamber a ferida. Silêncio de mudo cortado pela educação que ainda ficou: “muito obrigada por você ter vindo”. Porque não há por que chorar, não há por que falar. Apenas não se crê. Não pode ser verdade. História inverossímil! Minha filha morta, oras! Minha filha morta? Como? Possível ela estar ali dentro?, talvez não. Não vi o corpo, não me deixaram ver. Caixão lacrado. Melhor assim. Como é que ela era mesmo? Posso vê-la agora: rosto belo de olhos escuros grandes a falar e a rir, a rir das mazelas, das tristezas; cabelo escovado, na altura dos ombros que voavam cheirosos de perfume bom e aquele tique nervoso de enrugar o nariz ao rir... ah! mas ela ri e fala o que não posso ouvir, mas se mexe e me olha e está viva.
     A sobrinha debruça-se sobre a tia e num abraço rápido diz que foi um susto, que não esperava, que era uma grande tristeza, que gostava muito dela, que a família não pôde vir, que pessoas tão boas não podiam morrer tão cedo e se vai. Vai respirar lá fora para se recompor, alinhar os pensamentos e se depara com um dos irmãos da prima morta. Ele abre um enorme abraço, vem com os olhos em lágrimas, um homem enorme e bonito que se acabrunha diante da desgraça e se torna pequeno e Ana Marta se abre e recebe e dá o abraço. E o sentido ou não da morte com a emoção – que não dá muito para disfarçar, esnobar, dizer que não se está nem aí para tudo isso - a fazem mudar de ideia e passa então a cumprimentar um ou outro que vê, com quem um dia trocou algumas palavras, alguns sorrisos, que se encontrou em festas, nos batizados, casamentos e pela vida afora. Só não cumprimentou as filhas da morta porque a morte não é licenciatura para a hipocrisia. Bem que as viu. Viram-se. E como que num pacto mantiveram-se à distância. Não se cumprimentavam pelos caminhos da vida que cruzavam. Quando meninas se diziam “oi” pela simples obrigação de terem se visto. E era sempre ela, Ana Marta quem saia para o encontro dos “ois”. Agora estavam elas ali e por instantes se olharam e Ana Marta sentiu um gostinho de felicidade. Que bom vê-las, as eternas meninas com seus cabelos longos, tênis e jeans, eternas adolescentes em corpos de mulheres que há muito passaram dos trinta anos. As gloriosas promessas apenas gente com cara de gente. E onde estaria todo aquele glamour, narizes empinados e olhares desdenhosos? A mãe pagara caro, mas dera a elas a vida na sociedade que teve, mas que considerou pouco. Queria mais: queria caras em jornais, festas, casamentos ricos e postura de poder. A primeira rebenta se chamou Laís, cópia de uma representante da sociedade belo-horizontina. A mãe e a avó queriam para elas banhos em espumantes, cargos de destaque e muitas e muitas viagens internacionais. Custasse o que custasse. E as meninas, as três filhas, acreditaram. Acreditaram que o dinheiro e o glamour lhes dariam a glória. A glória não deram. Mas tomaram. Tomaram aquele velho sentimento de gente, de que também sento na privada e tenho cólicas. De gente que sabe que acabamos, muito antes do dinheiro, que morremos todo dia até o dia final e nossos corpos mortos são lavados por eficientes mangueiras num ladrilho gelado e não em banheiras de espuma. Que se preciso for nos quebram. Nos quebram pernas, braços, o que for preciso para que nos enfiem nos caixões. Depois nos passam pó de arroz , carmim nas maçãs e lábios para dar um ar de defunto saudável. Agora Ana Marta via as meninas tristes em corpos velhos com as bundas que cresceram e caíram. A prima do interior, da casa das teias de aranha as via e se lembrava dos “ois” não devolvidos e de rostos que se viravam para ver mais longe, mais adiante e não aquele ser desprovido dos ares metropolitanos. Logo agora que choravam copiosamente... maldade? Não, pensava Ana Marta, hoje principalmente hoje ela viraria o rosto para elas, em direção a elas e não moveria sequer um músculo: não vim aqui prestigiar vocês, apenas a morta. Por que não? Viram isso quando as olhei e não me movi ao grande e fraterno abraço? Não lhes fiz festa? Não lhes dei novamente a coroa da importância? Não as fiz rainha? Sim, prima cor bege também sabe ser de uma elegância fina, coisas de quem aprendeu a esperar – coisas da roça, finuras. Baixeza de espírito, Ana Marta. Alma não afortunada, Ana Marta. Escória! Sim, a prima do interior não perderia o gostinho, por nada. E eu me rio de seus olhares tristes “viu o que me aconteceu?” e eu me rio de suas lágrimas que jorram. E dos brados altos “mãezinha, mãezinha, por que você me deixou?”, os mesmos gritos que sua avó, a grande galinha sentada e encurvada, também soltou nos buraco-cachorro da vida em que morou quando enterrou sua bisavó, lá onde Judas perdeu as botas. Porque da roça também viera e trazia sua mãe que hoje deita em paz, para se casar com um jovem rapaz de família de bem – e de bens – que com ela se deitara e a deixara envergonhada e disposta a com ele ir até o final dos dias, pelo hímen perdido antes da hora. Melhor momento, quando a prima pudesse ser absoluta, não haveria para Ana, é claro. Viram? Eu vim. Estou aqui em respeito à morte, que vejam vocês. Pequenez de alma, com certeza. Que se dane o mundo. Quando é que poderia exercitar sua vil baixeza d’alma? Numa festa? Nunca. Não surtiria efeito. Num almoço de família? Seriam chiliques de uma mulher em período pré-menstrual ou pior: coisas de gente roceira. Melhor hora e lugar: hora da morte que reina única, assombrando os vivos, rindo-se prazerosamente, brincando de esconde-esconde. Quem será o próximo? Com medo, crianças? Discutindo sobre mim. Se venho na hora ou tarde... Encostada nas paredes brancas eu os vejo a destilar venenos contra a morta, contra os vivos e posso com minha roupagem branca, branca em neve, ouvir seus segredos, sussurrar em seus ouvidos minhas proezas... e vocês que se encostam em mim! Ah!, vocês se encostam em mim e nem sabem. Porque sou silêncio. Sou o momento do boom. O hiato. Eu estou aqui, estou ali, nas paredes, sub-reptício. Sou mulher? Feminino? Posso ser masculino. Posso ser ele que os vê de sua enorme altura e beleza, moreno e atraente a chamá-los com minhas vestes negras. Não importa. Sou eu. Sou o som que vem. Sou de toda cor. Sou cor da luz: renascimento. E todos virão a mim. Não sei a hora de cada um, mas sei que venho e venho em tempo certo, ou, prematuramente, que pena, quando vocês humanos exercitam seus livres-poderes, livres–arbítrios. Que venho, sempre venho. E os ouço agora, tão sérios diagnosticando sobre a morta: “Foi antes ou foi depois da hora?” Não sei da hora, mas sei chegar com ela, e venho sempre apesar das rezas, das encruzilhadas, dos corpos fechados, em sistemáticas benzeduras. Sou aquela que ou aquele que renova que transpira por vida nova, pois a vida antiga esgotou-se. E os pego e os prendo e os levo. Para sempre meus? Não. Apenas os levo e os entrego: ao Grande. Ao Absoluto.
     Ana Marta caminha até a lanchonete do cemitério para tomar um café. Pensa no quão é diferente a vida que leva no interior. Na terra dela, o velório é a oportunidade de comemorar a vida. A vida que se foi e a vida que ainda se tem. Tudo vida. Até a morte que não passa de vida às avessas. E nessa comemoração se juntam as pessoas em volta do morto e servidos são café, pão-de-queijo, cachaça e linguiça. Maneira de passar as horas que se penduram no dia triste. Maneira de continuar vivendo e contando casos e colocando assuntos em dia. Que o filho da dona Cotinha surgiu na cidade com mulher nova, e com ela montou casa apesar da legítima que finge nada ver, mas que sabe e se corrói por dentro e por garantia vai ao terreiro de macumba. Que dona Rosinha perdeu o marido numa enchente, mas se embeleza sempre, todos os dias, a esperar marido novo, enquanto carrega na bolsa um velho sabugo de milho. Que a moça que faz linguiças para vender tem o vestido puído e manchado debaixo do braço, porque enquanto prepara a carne, coça as axilas. Ana Marta ri.

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