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Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



quarta-feira, 26 de maio de 2010

UM MINUTO

                                                           Suzana Costa Guimarães


Ela pediu um minuto, a noite. Tinha as vestes alaranjadas, daquela cor que se vê ao longe quando o sol se põe. Os cabelos brilhavam do azul de também fim de tarde. Ela emitia os sons distantes do silêncio. Ela era apenas aquilo que os poetas sonham: a dor inquestionável. A dor por doer, sem motivo, sem saber bem porquê. Ela o viu ao longe. Pediu um minuto quando se encontraram. Ela esperava. Porque noites sempre esperam. Toda a gente se imobilizou. As águas se imobilizaram. As palmeiras pararam de tremular suas folhas. Aquela terra estranha esfriou e esquentou, sem compasso. Foi um instante. Ele, que ela sonhara ver, ali tão perto. Aquele que busca, igual a ela. A noite pediu um minuto, porque não controlava os tempos dos sóis. Ele concedeu um minuto e se perdeu no fascínio dos olhos dela. Olhos perdidos dos apaixonados que miram a lua cheia. Olhos da esfinge amarfanhada pelas mantas do destino. Ele era o deserto, com sua imensidão, com suas dunas que nunca estão no mesmo lugar. Com seus mistérios e oásis. Seus delírios. Os sonhos dos enlouquecidos por encontrar qualquer coisa. Porque qualquer coisa se encontra num deserto. Basta esperar. Ou a noite o esperar. Juntos, noite e deserto entreolharam-se mil vezes mil. Para ter certeza da junção do universo. Se toda a gente pudesse ver, veria os céus a empurrar aquele encontro, com suas estrelas a beliscar o improvável. O deserto encontrou o vento frio da noite, com seus perfumes almiscarados e seus segredos. Lembrou-se do início dos tempos, agradeceu a dádiva de toda aquela imensidão, perdeu-se mais ainda em suas dunas. Ele podia entender a noite. Ele sabia entendê-la. A noite sentiu suas vestes deslizando por aquelas areias quentes. Sentiu o vapor e as fumaças de seu olhar curioso. Tateou no escuro e se deitou leve e serena naquele corpo de areia. Alargou-se. Sentiu o cuidado dele ao se aproximar em sopros de ventos. Toda a gente abriu um pouco de suas tendas. Pequenas frestas. Para apreciar o encontro dos dois. Mas muito não se via, pois as dunas transmutavam-se numa dança silente. As folhas das árvores se agitaram por um minuto. Um pássaro interrompeu seu voo, quebrou suas asas para não deixar de ver. Para gravar para sempre. A antiga e conhecida serpente nada viu, enroscou-se em sua ignorância e vaidade. Se deixou fascinar por si mesma, por seu longo corpo, esguio e escamento. Não viu a chuva grossa que lavou noite e deserto. Não viu o milagre. Não viu as gotas d’águas, nem a maciez dos grânulos de areia. Não viu as vestes laranja em balouço. Não viu o medo do deserto de perder aquela visão. De perder a alegria da noite e suas loucuras ocultas. A visão do laranja de encontro ao azul, de quase mar. O deserto se achou. A noite se perdeu. O deserto se perdeu. A noite se achou. Por apenas um minuto: o tempo que se gasta para se entenderem amantes.

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