Ilustração por

Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

MEU NOTURNO É VOCÊ


Esfrego os olhos. Borro os olhos. Tenho pressa, o ano velho está por hoje e eu já me vasculhei toda à procura de qualquer coisa para você. Mas, além dos olhos borrados, o que mais tenho para lhe oferecer? Nada, meu bem. 

Quem tem é você. Tenho um monte de palavras que só saem quando querem e você tem este corpo que me apetece, que anda por aí, alheio a mim. Eu teria a curva dura da cintura, mais para perto do quadril, palavra que você não guarda. Eu teria água no corpo, o suficiente para fazer escorrer o teu, mas você erra na pronúncia. Cederia a curva alta dos montes, uma planície, alguma erosão na pele, mas você desconhece a palavra geografia. 

Esfrego os olhos, já não me importa o kajal. A maçã mordida, tão bela, oxida em cima da pia (foi fingidamente esquecida). 
Meu sutiã preto com alças de strass virou decoração. As horas noturnas não passam, o tempo parou. 

Sou poeta morta. Minha casa entrou em pane. Na geladeira, mofa a comida; no corpo, qualquer vontade.

Esfrego os olhos. Firmo os olhos e relembro aquele teu respirar que você deixou passar, assim que eu lhe disse, "I can take you with me"...

Escuta, escuta o meu sussurro... a noite caía lenta sobre o asfalto (a América é tão cinza...), ventava pouco, frio, gostoso (a gente parecia tão a sós...), eu tenho asas para voar, por que você não vem?


Por Suzana Guimarães

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Qual o teu desejo?






Meu desejo? Virar estrela a fim de iluminar tua escuridão.

Suzana Guimarães

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

DO HOMEM QUE NÃO AMEI

  
Dos homens que eu amei, fui saindo aos poucos. Peça por peça, eu ia desnudando-me, até a nudez completa. Nua, eu partia. Porém, houve um homem que não amei, mas o casaco que eu vestia, ao estar com ele, era o próprio, o homem. Sabe aquele pulôver, jaqueta, poncho, pele falsa ou verdadeira, aquele que cada um o possui para sempre? Assim, era ele para mim. Com esse homem, eu não precisei ir a lugar algum, mas com ele, eu passeei por secos becos em noites solitárias; com ele, caminhei vales calados de Katmandu, vi pobreza e beleza, tudo misturado e intrínseco. Dancei para ele junto aos ciganos, rodei meu vestido floral, compus um verso ou dois ao som de velhos violinos. Recordei florestas de pinheiros, botas socando o chão; uma casa isolada, no alto de um caminho sem fim. Lembrei-me de pessoas que nunca vi, de cortinas de pano frágeis a lhes proteger. Com ele, sofri medo e saudade antecipada; senti mais coragem, pensei em acreditar. Dormi em seus braços, num canto, isolados, com uma stalingrado a nos guardar. Por causa dele, ganhei um tempo a mais nos registros de nascimentos do sem fim do mundo. Por causa dele, fiz jura eterna, daquelas que doem e clamam dia e noite por sua consumação. Construí uma casa com paredes de pedra, desenhei num mapa uma estrada de trilhos, tranquei a casa e saí pelo mundo, esperando sua chegada.

É noite eterna. Novamente nua estou e eu não sei por que retirei esse casaco tão depressa, puxei suas longas mangas, seus botões e forro, em mudez completa. Não foi aos poucos, queimava sem fogo. Não foi aos poucos porque foi peremptório. Não houve o deslizar agonizante da saída, nem a dor de perdedor.

Não olhei para trás, ceguei meus olhos para nunca mais ver, minha língua, para nunca mais falar. Fiz um silêncio maldito.

Do homem que não amei, saí às pressas.

É noite. Escuta, escuta, mãe, esta batida seca no peito, tambor dos mortos. São meus passos que correm. Só não sei por que corro. Só não sei por que parto. Diz, mãe, diz qualquer coisa, por que nunca amanhece?


Por Suzana Guimarães.

sábado, 17 de novembro de 2012

MOÇO!


Moço!

Pega teu sorriso, tua gargalhada solta, tua felicidade explícita por estares ao meu lado e vai dormir.
Pega teu olhar fixo, constante, parado em mim,
Pega tuas mãos lentas, teus toques suaves... e vai tu!

Vai tu, porque tu és bronco demais para mim! Sou delicada, sou quente, sou dos Trópicos. Sou molhada. Desertos, só os tenho na alma, não como tu que os tem em alma e corpo.

Pega teu corpo vazio e enche de alguma bebida bem barata e encharca-te nela, esquece que cruzei teu caminho. Tu és árido, tapa seco. Ah, se eu te desse um tapa! Guarda-o em caixa de veludo para que não esqueças tu que até para bater e desprezar, sou artista; faço belos arranjos, mesmo que me doa, mesmo que me fira... quem nasce abaixo do Equador possui calor, mas isso tu desconheces, tu conheces apenas calor de lareira.

Por Suzana Guimarães

domingo, 28 de outubro de 2012

SOLIDÃO DE VOCÊ

(fotografia, por SCG)
 
(...) Virei aquele ser que se mimetiza ao sítio, mas não pertence a ele. Adapto-me à força. Não sou de lugar nenhum, sou sua, apenas isso. Só você para me salvar dos outros e de mim mesma. Eu vivo correndo, como foi o meu pai, e você o salvava e você o salva, da mesma forma eu preciso ser salva, diariamente.

Faço de tudo para não pensar em você, para ser do lugar, viver o momento, mas meus esforços são puro fracasso. Vejo-a nas vitrines, nas senhoras que passam do outro lado da calçada, nas minhas mãos, na xícara de cafezinho. Vejo você no tempo, no nada, na visão à frente, no espaço à minha frente, o chão, o céu, o vento, o caminho que estou indo caminhar, como se você fosse o rosto enorme do mundo a me olhar.

Eu lhe conto coisas, amarguras, alegrias. Eu rio com você, mas tudo é só solidão, sou apenas uma tonta que não sabe viver.

Tenho medo de lhe perder, mais do que já perdi, no dia em que o silêncio de oratório for a minha única verdade. Tenho medo de desprender-me da razão, do fio, da linha tênue que me separa da total insensatez.

Parece que fiquei feia, sem graça, tirada dos engonços. Os dias correm e eu corro junto com eles, trepidando, feito cristais numa prateleira que vagarosamente despenca.
 
Por Suzana Guimarães

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

VOLÚPIA

  
Houve um tempo em que ela não fechava os olhos nas madrugadas porque a novidade batia à porta e lhe fazia desejar, recordar, querer mais. Ou não. Às vezes, negar era melhor. Mas, ela não fechava os olhos. Hoje, ela, após derrubados todos os deuses mofentos, também não fechou os olhos. Não, foi ontem. Quando foi? Importa? Há quem impregna o outro sem o toque da aventura, apenas transmite.

Era noite pois tudo era escuro, escuros os olhos dele, escuro fundo de fundo de um poço, obscuros desejos, porém, leves... aroma leve, leve, aura envolvente. Impregnada, ela ficou e guardou. Carregou para casa o etéreo, inodoro, impalpável, invisível.

Quase errou a rua, quase perdeu o rumo, quase não voltou para casa. Ah, se ele a chamasse!

Mas ele não chama, ele olha, ele perfuma, ele deixa o odor no corpo dela, sem lhe tocar.

Ah, se ele a tocasse!

Mas ele não toca, ele não foge, ele não corre. Ele olha, permanece. Ele é um cheiro sem cheiro, ele é volúpia, ele se estende pelas ruas, calçadas, entra no carro com ela, atrás dela, ao lado dela, dentro dela. Ela mal respira, economiza ar para carregá-lo por mais um minuto, dois, horas, uma ou três; por madrugada adentro.

por Suzana Guimarães

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

QUE SEJA CALMA


Que seja calma a música que toca, em som baixo, para não despertar mais nada... que sejam silenciosos os passos, os sentidos e as batidas do coração. É preciso adormecer. Que as vozes não façam eco, não reverberem, apenas completem os espaços entre os vazios do silêncio, só o bastante necessário.
Que tudo se guarde, se acalme, seja raso, seja lento, seja nascituro, tudo ainda imbuído no ventre. Que o momento seja este: aquele em que o ponteiro parou. É preciso adormecer.


Por Suzana Guimarães
Nota: texto anteriormente publicado em 'O Medo de Suzana', em 19 de setembro de 2012.

E SE...

  
E se eu lhe dissesse que fiquei mais forte, mais bela e singela? E se eu lhe dissesse que os dias se tornaram rasteiros ou lentos, no compasso de nossos passos? Que meus passos espreitam os teus, que meus braços pedem os teus? E se eu lhe dissesse que toda a verdade solta à pele, que falo e de minha boca cai líquido desejo?... porque há em ti um vento frio que me acolhe e me chama e me diz que o sol que arde lá fora é momentâneo e só nós eternos, desde que, veja bem, desde que meu corpo esteja próximo ao teu e eu entendo que existe, sim, existem oásis de verdade, um deles és tu.

E se eu lhe dissesse que não somos dois, somos um?

por Suzana Guimarães



Nota: texto anteriormente publicado em 'O Medo de Suzana', em 29 de setembro de 2012.

EU QUERIA POUCO, COISA MÍNIMA





Eu queria escrever qualquer coisa, bem pouca, qualquer coisa que me aliviasse e, ao mesmo tempo, preenchesse. Algumas palavras certas, bem encaixadas, dispostas informalmente, com o intuito apenas de dizer para mim as verdades que procuro e não encontro - bem provável que eu mesma impeça esse processo! Eu queria dizer qualquer coisa para mim mesma, pois, em mim, eu confio. Eu queria uma visão clara, certeza que não vacilasse em dúvidas. Eu queria saber a razão de eu me sentir assim, nem cá, nem lá, em lugar algum. Que essas palavras me transportassem para um lugar sereno, habitado, cúmplice. Ou que alguém viesse e fizesse isso por mim. Penso que não seriam palavras escritas as melhores, tão pouco as pronunciadas, penso que o ideal seria alguma ação, um gesto ou dois, um convite para dividir uma sombrinha, não, melhor ainda, alguém que estendesse o braço e me puxasse para debaixo dela. Eu queria pouco, coisa mínima.




Por Suzana Guimarães
 
 
Nota: texto anteriormente publicado em 'O Medo de Suzana', em 5 de agosto de 2012.

sábado, 6 de outubro de 2012

MINHA ALMA SEMPRE BUSCOU A TUA

 
Fotografia de SCG
 
Você chegou manso, na mesma lentidão da névoa que cai. Diz palavras que só os olhos revelam e ninguém e nada mais pode traduzir melhor. Eu respiro em miúdo e em disparada pois cada passo teu em direção a mim, assim, tão determinado, bambeia as minhas pernas, desequilibra meu frágil muro de arrimo.

Duas ruas se encontram, uma estreita e florida, outra, larga, longa e seca. Não é a primeira vez que você vem entre névoa densa. Nem será a última. Rosas brancas caem em cachos, nas entradas das casas... da mesma forma, muito tempo atrás, quando os meninos corriam soltos pelos campos e viraram homens e se tornaram pais, tiveram bisnetos, morreram, serviram de adubo às flores...

Silêncio em nossos corações, no peito, saudade antiga que não se entende, pouquíssima visão. Grandes encontros prescindem de grandes ornamentações.

É manhã clara, manhã de festa. Flores renascem todos os dias, você nasceu para mim, eu vim cedo, na correria, na pressa de lhe rever, me fiz flor antes da hora, me perdi nos ventos que sopravam forte, mas eu lhe alcançaria, mesmo que dois séculos se passassem.

Então, vivamos enquanto ainda somos tenros, amanhã retornaremos à terra, seremos adubo, e, no sem fim da vida, caminharemos novamente, uma alma buscando a outra.

Por Suzana Guimarães

sábado, 29 de setembro de 2012

O DONO DA FILA TINHA DUAS MEDIDAS

(Suzana Guimarães - arquivo pessoal)

No primeiro dia, ele me olhou com bastante braveza e me apontou o final da fila. Eu não sabia que havia filas. Ele era o dono da padaria. Tinha o chapéu de chefe na cabeça, e bastante simpatia. Eu me senti a mais errada dos humanos. Corri para o fim da fila e, todo dia, eu para lá ia porque a fila era por ordem de tamanho. Eu era pequena, ele, grande. Eu o admirava porque seus pães eram bem feitos, milimetricamente medidos, sal no ponto, nem a mais nem a menos. Ele sabia sovar bem. Ele tinha dedos mágicos, braços longos e fortes, artísticos, inclusive. Teve quem corresse para passar na frente, mas ele era contundente, dizia que ali era um lugar de regras a serem obedecidas. O pão de cada um que esperasse.

Um dia, chegou um menor que eu. Vestia casaca e tinha um cravo de ouro na lapela.

O chapéu branco imaculado desceu em gesto rápido ao vento, em elegante reverência.

Tão lindo aquele cravo de ouro, parecia conter, inclusive, um diamante!

O menor que eu foi direto ao balcão. O pessoal da fila percebeu. O guarda no trânsito percebeu. A prostituta que fazia ponto em frente à padaria também percebeu.

O chapéu subiu e desceu dos céus ao chão, do chão aos céus.

O pessoal da fila foi desaparecendo, um por dia. Os pães passaram a ser feitos com dois pesos e duas medidas... e até a prostituta, tão vendida, procurou outra freguesia.

A padaria? Fechou.

Por Suzana Guimarães
 

sábado, 15 de setembro de 2012

QUANDO BASTA

 
 
(fotografia gentilmente cedida por Iracema Buscacio)
 
 
O que eu quero é só isto, olho com olho, boca com boca, sexo com sexo, nada mais, somente isso. Ah! Almas em harmonia.
 
Eu vou esperar o amor. Há dignidade também num meio-fio de calçada. Eu me sento e espero. Ele há de passar e de se fazer claro.
 
Perdi quantos amores de uma só vez? Não sei. Dois ou três. Dois e meio, pois até o desconhecido, eu amei. Aquele que poderia ter sido, aquele que nunca vi, mas amei, só amei.
 
Amores nascidos em tempos diferentes, mas mortos de um golpe só. Mas, quem disse que amor se vai de um golpe só? Não é estrela cadente, que, de repente, se vai. Foi. Você mal viu. Amor arruina-se aos poucos, em golpes pequenos e baixos. No instante final, um livro se abre e você vê tudo aquilo que fingiu não ver. Fazer o quê? Guardar em pastas no arquivo morto.
 
No cinema, eu chorei. Na realidade, queria berrar, mas o único som que eu emitia era o fungar do meu nariz e o do papel barulhento que catei na minha bolsa para enxugar o rosto molhado, enquanto a moça cantava o verão que ela não viu passar (*).
 
Eterna ilusão, a de estendermos o brilho de um amor que já era, virou estrela, está lá, mas não mais existe. Pior que o amor pela metade, o amor que não vi, só senti. Aquele amor que eu não reconheceria se me esbarrasse nele, na dobra de uma esquina. Mas, eu também não reconheceria meu tio Edgarzinho, nem os primos e primas, sequer meus namoradinhos de portão.
 
Eu, hoje, não reconheceria ninguém. Eu, hoje, estou fechada em paus, animal ferido, enjaulado, mas querendo sair. Acabou tudo. Dois amores e meio. Sobrou eu.
 
 
 Por Suzana Guimarães
 
 (*) Referência ao filme "Bem Amadas", dirigido por Christophe Honoré.

domingo, 5 de agosto de 2012

A LOUCA DA RUA




Não há nenhum moço que me recorde você e isso só faz sofrer porque pareço a louca da rua, que só imagina.
Quando você roçou tua barba em mim, estanquei o sangue que corria, a saudade que se anunciava, toda a fala. Tranquei meu peito, bem guardado, no silêncio da hora, na hora do abraço, guardei o instante como se decora senha. Caminhei para casa em passos miúdos, com medo de perder o tudo pouco que você havia deixado, em axiomas. Eu era só saudade. Na virada da esquina, olhei em volta, vi que estava só, novamente só. Na virada da segunda esquina, eu fui pranto. Abri a água contida, não soltei palavras, a louca da rua às vezes caminha muda e mal sabe teu idioma. 

Onde está, onde está a última fotografia que guardei de ti? 

Em mim.

Por Suzana Guimarães

terça-feira, 24 de julho de 2012

SIMPLES ASSIM...



(Fotografia, por Suzana Guimarães)

Eu subiria nas pontas dos pés, para tentar ver o fundo do mar onde naufraga tua alma. E teus olhos doces me contariam histórias tristes e também alegres. Tua boca falaria do poeta que vivia na esquina e hoje nos vigia e teus lábios mostrariam a ele que ainda há poesia, quando você roçasse os teus nos meus, de leve, temerosos, porque você é o menino de debaixo da escada, aquele que conta, conta, mas nunca vai atrás da brincadeira, por medo dos esconderijos dos outros. Eu subiria nas pontas dos pés para alcançar tudo aquilo que você vê, ali do alto, e o faz tão pequeno, tão desencaixado em suas próprias peles. Eu lhe diria sobre a minha cidade, um cantinho escondido no mapa, onde gaivotas sobrevoam menininhos que carregam doces, maritacas alardeiam o nada e corvos provam que são apenas pássaros, nada mais que isso. Eu lhe mostraria meu lugar sagrado, o pier da cidade, onde você pousa os olhos e percebe que ali não há portas. Eu lhe convidaria a escrever nas areias da praia, um haicai urgente, antes que as águas o lambessem. Eu lhe diria que tuas peles lhe incomodam porque você é um dentro de si, outro, fora. Eu subiria nas pontas dos pés para ouvir tuas queixas, e o dourado do Sol jamais ganharia da cor de tua alma espreguiçada quando você enfim se deitasse em meu colo. Você não sabe, mas, tenho poderes mágicos, os de fazer você mais belo, feliz.

Por Suzana Guimarães

quarta-feira, 27 de junho de 2012

A RAZÃO DA ESCRITA

(Suzana Guimarães por LRMeneghini)


Escrevemos porque temos que preencher. Se estivesse tudo muito bem, estaríamos absolutamente ocupados.

(Suzana Guimarães)

sábado, 23 de junho de 2012

A NOITE E EU




Hoje, eu quis tocar a noite
por breves segundos
ninguém viu, ninguém soube
Só você que me lê, agora.

Eu quis tocar a noite,
falar para ela tudo o que eu poderia
Em total mudez,
em total nudez.
Ser dela...

Ser o campo para o seu orvalho,
ser por ela, possuída...
vagarosamente, mas de forma eterna.

Antes que o amanhecer viesse e me levasse
Com suas regras preestabelecidas, com sua cara dura, quase sempre mal amanhecida.

Envaidecida, me deitaria em forma de flor que desabrocha, 
Que nunca desabrochou.
Ela não sabe, a noite, mas eu sempre fui dela.


Por Suzana Guimarães

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Demorar a saber é demérito dos que amam

(Suzana Guimarães - arquivo pessoal)


Ele guarda um segredo. Eu sei, porque, quando olho para ele, lembro-me do cofre escondido. Era um cofre antigo, na casa do meu avô, portanto, posso saber o que é um segredo eterno à luz do dia.

Pelas manhãs ou na hora do pôr do Sol, ele vai para a praia. Pouco sei dele. Ele pinta quadros, desenha mulheres, gente, instantes humanos. Ao lado dele, as perguntas que ele guarda, para me desorientar.

O mundo dele é em Inglês. O país dele, eu invadi. A cidade, mais ainda, adotei como destino escrito n`alguma estrela. Pouco sabemos de nós, somente o que permito que saiba e eu o deixo confuso, e as línguas atrapalham. E ele a mim também desconserta quando faz perguntas ou me olha com olhar desviado. Naqueles olhos já mergulhei e me encontrei, e eu me pergunto se ele se perde ou se encontra nos meus. Tenho mania de confundir, mas não é por querer, é por hábito da defesa. Ele desenha um rosto vagamente conhecido por mim, mas eu não sei quem é. Ele não se revela, só quando faço fotos dele, na beira da praia, colorindo telas. Eu penso em me revelar, mas algo em seus gestos me diz que ele me vê por entre véus. Ele me vê por uma fresta da razão, porque, o todo ele reconhece em linguagem de alma, mas ele ainda não sabe. Demorar a saber é demérito dos que amam. Há quem gaste décadas.

Acostumei-me à coisas trancadas. Na casa do meu avô, eu me sentava em frente ao cofre e chupava laranjas, mastigava chicletes, fazia enormes bolas, coçava os pés, descascava o esmalte. Cantarolava músicas que eu jamais sabia além de uma ou duas estrofes, misturava as letras, prazerosamente. Da mesma forma, gosto de estar em frente a ele, mas dispenso qualquer fazer... ele soletra meu nome repetidamente, feito ladainha, e isso me embala, mas não me basta.
 
Do cofre que o habita, eu já sabia, desde sempre, desde o primeiro olhar trocado.  Ele mergulha em ondas para dentro de si mesmo e, antes que ele alcance a praia, ele mergulha em outra...

Se meu avô revelasse o segredo, perderia a graça. O mistério por fim aniquilado...

Eu queria que ele lançasse ao mar nosso maior segredo, e me desse a mão, me convidasse para caminhar. Só isso, me convidasse para caminhar.


Por Suzana Guimarães 

quarta-feira, 6 de junho de 2012

EU SOU ABSTINÊNCIA DE VOCÊ


Morro de sede em frente à fonte, morro de fome em frente ao pote. Ando sedenta da água dos teus poros, que me lavavam e me serenavam, caíam em brisas, varriam os desgostos... da tua pele que eu via de olhos vendados e também nos dias das cegueiras, quando o mundo parecia descolorido. Ando sedenta, morrendo em secura, a derme trinca, racha, machuca os olhos do coração. Ando sedenta da gota que eu ganhava, do mar onde eu nadava... Tudo é desconsolo e aridez. Às vezes, bate um respingo e eu lambo com os olhos, o pouco que seja, mas isso me mata. É pouco, eu já tive muito.

Meus olhos não se fecham, teimam em ficar abertos, arregalados, à espera, como se um piscar pudesse me arrancar de vez de você. Finjo estar viva, mas estou quase morta. A fome é um vazio no peito, insaciável. A fome diz de você, e eu me acabrunho e me escondo. Eu não sabia que poderia morrer assim, de forma escondida para ninguém ver. Doem meus ossos, minha cabeça gira, perco-me na fome constante e é essa constância que mata, pois eu já tentei matar você para me salvar. Eu não o amo com o amor dos romances, eu não o desejo com o ardor dos amantes, eu sou abstinência de você.

Há um veneno subindo e descendo pela garganta, meus pés andam feito chumbo em chão de algodão, não sei se o que passa longe está perto, tento lhe roubar com os olhos, mas você se fechou em corpo aberto, de tão poderoso que é, cortou a linha tênue que nos unia.

Sou hoje abstinência de você, eu não o amo, sou um corpo que deixou de ter o seu, sou alma que perdeu o fino frescor, ameno, delicado...

'I will die'.

Por Suzana Guimarães

terça-feira, 22 de maio de 2012

ARANHAS LASCIVAS



Passou as folhas com rapidez, tinha pressa, quando viu a fotografia deles, as cabeças encostadas uma na outra, ele sorria. Ele sorria escondendo os dentes, macio... no olhar, determinação, ele estava bem, feliz. Ela sorria, parecia menina. O olhar dela se derramava em lassidão, como se tivesse acabado de fazer sexo com ele. Satisfeita.

Passou os dedos na ponta da língua, para ver mais, porém acabava ali. Respirou. Olhou e retornou inúmeras vezes. Um dia todo se passou, uma noite e outro dia, e, novamente, voltou àquela imagem. Ela estava, sim, lasciva. O olhar dizia, a boca em sorriso largo, e, algo mais.

Tentou pegar aquele algo mais. Impossível. As cabeças deitadas no chão olhavam para a câmera.

Voltou os olhos para ele. Era ele a causa.

Tocou os lábios, fechou os olhos. Desceu dois dedos pelo pescoço, tocou a ponta da coxa, à altura do joelho. Rodou a mão, calmamente. Prendeu a respiração e olhou novamente para ele, sentiu pudor, como se ele a visse, como se ele soubesse. Desfez o pensamento, tirou mecha invisível de cabelo do rosto, encostou a mão no queixo, sentiu um calor saindo por detrás do joelho. Parece que homem fica feliz e mulher satisfeita, pensou. Deve ser isso, aquelas mãos fizeram a mulher, o corpo arredondado. Homem vem pronto, mulher é feita.

Pousou os olhos nos olhos dele, a causa. Pensou em suas próprias consequências. Um homem daqueles poderia lhe custar um sanatório, porque ele não fazia esforço, ele apenas sorria, levemente.

Pela manhã, acordou sobressaltada. Uma aranha de pernas compridas passeava pelo teto do quarto. Acendeu a luz, quarto escuro. Iria matá-la, com certeza. Levantou-se. De pé, pescoço esticado, viu que nada havia. Deitou-se. Acalmou a aranha que havia em si.

Por Suzana Guimarães

sexta-feira, 11 de maio de 2012

MAIO



Sidney rega as plantas todos os dias e diz nos esperar. Ele remove a terra, afasta e mata pragas, protege os morangos no inverno. Para Sidney, vinte anos ou dois dias é a mesma coisa, e ele diz nos esperar. Ele parece muito certo, mas não é alegre, muito menos triste, ele se veste de luto e disse esperar maio. Ah, quantos maios já se passaram! Quanto tempo, quantos caminhos que se desfizeram e outros tantos que se criaram ou retomaram? Quanto sereno caiu e geada e chuvas e um calor insuportável ameaçou aquele sítio? Sidney não conta, não faz cálculos, ele olha os céus, escuta o barulho das cobras que se arrastam pelo chão e prevê tudo aquilo que só ele sabe, e parece que todo o mundo sabe e também as luas e os raios, as singelas florzinhas de mato que crescem em desalinho, cobrindo a relva que também sabe. Só nós dois não sabemos.

Nós dois jogamos cartas. Eu lhe dou uma sequência, você me dá única carta e me bate. Inverto o jogo e tudo se ausenta, inclusive você. Ou seria justo o contrário? Não importa. Sidney diz nos esperar e eu espero mais dois dias, e, mais dois só, pois, assim que entrar maio com céu de primavera - até onde já se prenuncia inverno - eu assino a carta que não escrevi, não enviei, sequer entreguei, uma carta de amor. Descobri que só se pode dizer adeus, amando, pegando em mão invisível, tocando dedos que não existem e dizendo, com carinho e ternura, que é hora de nos desfazermos de nosso pacto, oculto laço que rói minhas fibras internas.

Era maio quando nós nos deixamos. Seria em maio que nós nos reencontraríamos.

Sidney enviou-me um mapa, marcou com setas e um 'x' enorme, ele insiste em nos esperar, disse que há morangos prontos para serem mordidos e um campo onde poderemos nos sentar para ver os dias se findando. Sidney ama o nosso amor; nós, não.


Por Suzana Guimarães

sexta-feira, 4 de maio de 2012

É MAIO, AS CARTAS SERÃO DIÁRIOS?


(fotografia, por SCG)



Los Angeles, 3 de maio de 2012.


Querida Lunna,


O silêncio é quase absoluto na casa. Todos se deitaram. Ainda não viramos o dia, mas o fato de estar aqui, agora, beirando a madrugada, sozinha, cortinas quase fechadas, quase escuro, isso me felicita, e isso deve ser maio sorrindo para mim.

Ouço apenas o som do teclado do meu laptop, a geladeira e o ar-condicionado que liga e desliga, liga e desliga... o barulho dele é alto, mas o ar gelado que me alcança rápido e o fato dele fazer suas pausas me agrada muito. O barulho de geladeira é uma recordação que carrego, das melhores. Lembro-me de casa cheia, alugada na praia, meninos e meninas espalhados pelos chãos, e de uma geladeira que atravessava com seu som nossos sonhos. Ao lado, dormia, alheio a tudo, e roncando às alturas, o cachorro da família... noites na praia, quando a minha única preocupação era saber se iria fazer sol ou não no dia seguinte.

Há única luz que me alcança, que não vem do computador, é um abajur ao lado esquerdo da minha mesa. Design moderno. Cinza, com um pescoço comprido e móvel e eu posso jogar o facho de luz para onde bem entender. Ganhei de presente do meu filho um ramo de lavandas, amarrado numa corda de sisal, está preso nesse abajur, ele disse que era para perfumar. Mas, o que perfuma mesmo são as fotografias emolduradas, próximas desse abajur, elas sorriem para mim.

E sorrindo, voltaram os dias, as vontades; antes, tudo parecia desconectado, balões soltos no céu, à deriva. Meses de desequilíbrio físico, doenças incomodando a paz da alma, um enorme descrédito no ser humano, um balanço forçado, ocasional, mas picando feito agulha no nervo, tudo isso parecia não ter fim, corrente do mal a se arrastar atrás de mim. Até que outro dia, eu sentei e chorei. Cansei. Maio chegou, algum anjo se sentou à beirada da minha cama, alguém tocou em mim com olhar doce de despedida e isso não me pareceu triste, apenas contextual. Ah, minha amiga, ando pensando que amor é contextual! Partes anteriores se juntam à outras do texto e explicam tudo. Eu não sei dos outros, mas passei a vida fugindo do contexto em si. Disfarcei bastante, fingi que não estava prestando atenção, fiz um certo corpo mole, quis, não querendo querer, mas agora venho me freando, apontando os momentos de falha e corrigindo-me como a professora no primário, que repetia, repetia e ninguém parecia ouvir. Só que agora, estou atenta. Pulmões abertos, corpo em prontidão.

É maio e ele parece profecia de mãe. Um mês que cheira à flores de laranjeira, que tem um céu pintado de azul do mar e por aqui, botões brotam dos ramos, ansiosos por aparecer, a palmeira Havaiana enche-se de brotos verdes, após meses estática em paus. Estou cultivando ervas, e aumentei a minha coleção de cactos, esses, sempre me fascinaram, pela beleza exótica e pela resistência.

Já nem ouço mais o barulho da geladeira, me perdi da contagem de liga e desliga do ar-condicionado, ficou o som do teclado, o som da minha voz interna escrevendo esta carta, pois eu me perco em cartas, assim como me perco nos dias lindos, a alegria é tanta que desligo o sono.

Mas, é dia novo, nascendo. Não tenho uma vista bonita que me leva para um horizonte adormecido, mas tenho a sensação de que voltei, e voltei melhor, mais forte e ponderada, disposta a cuidar bem do jardim, renegando sem dor ou remorso as flores e os cravos que amargam meus toques doces, sossegados... tolice acreditar que o belo não machuca! Agora, eu quero escolher as folhagens do meu canteiro, arrancar sem dó o que não quero e aguar diariamente as mudas que ainda virão, dispostas a se aconhegarem neste meu coração afofado pelos ventos que maio traz.

Esqueci-me de perguntar por ti! Onde você deixou tua última xícara de chá? Teu último buquê de flores, a última imagem de ontem? Escreva-me. Conte-me sobre o sótão e seus segredos, conte-me também sobre as últimas receitas, diga-me do gosto que ficou após o último vinho. Conte-me sobre ontem e enumere tua lista para o amanhã, eu estarei à espera.

Beijos!

Suzana Guimarães

terça-feira, 1 de maio de 2012

REVELAÇÃO



Com quantos desertos eu te fiz? Sentei na areia para contar. Vi a vastidão sem fim, um dia que se acabava pouco a pouco, da mesma forma como foi sentir você, pouco a pouco... apenas percebi quando eu não sabia mais até onde ia meu nome em ti e teu nome em mim. Faz silêncio, escuta! Eu te fiz mapa, bússola, lagos, rios e mares, enquanto eu atravessava desertos. Quanto andei! Quantas vezes parei? Descobri você quando as areias quentes me tombaram e eu caí, exausta.  Percebi que há solidão em paz, que você pode ser qualquer coisa, um grão de areia a molhar meus olhos, um lago inventado na sede, o grito do pássaro que voa alto ou o que bica o chão, procurando alimento. Com quantos caminhos eu te fiz? O movimento mais monótono, a batida mais constante, nada se iguala... nada se compara, pois eu fui além de mim para te alcançar, fui longe e perto, mas não parei e ultrapassei a vontade dos humanos. Faz silêncio, escuta, você pediu a resposta, eu lhe deixo a pergunta. Até onde eu andei em ti?

Escreva meu nome cem vezes cem, o tempo que contei, e enterre-o nos grãos mais suaves que te tocarem. Leve-me com você, pois já posso te tocar, depois do tanto que te fiz, faço-me grão.

Por Suzana Guimarães

domingo, 8 de abril de 2012

VOU ALI, APRENDER A OLHAR DE LONGE

(fotografia, por SCG)
 
 
"... Ocasionalmente precisamos descansar de nós mesmos, olhando-nos de cima e de longe e, de uma artística distância, rindo de nós ou chorando por nós; precisamos descobrir o herói e também o tolo que há em nossa paixão do conhecimento, precisamos nos alegrar com a nossa estupidez de vez em quando, para poder continuar nos alegrando com a nossa sabedoria..." Friedrich Nietzsche

segunda-feira, 2 de abril de 2012

VOCÊ E EU




Atenta
Entre tuas pernas
Gravo na mente

Tua boca, teu nariz e olhos
A dobra do queixo
A boca que pede beijo
Fechada em linha fraca,
Débil...
Passo a galope
Pelos vãos dos meus dedos
Entrelaçados nos teus

Vejo teus olhos entrefechados
Rasgo negro a encobrir desejos
Vejo tua vigília...

Assim sou eu, pois sou memória
Sou qualquer coisa que se perde
E só se acha assim
Sobre o teu templo que é a minha história


Por Suzana Guimarães

sexta-feira, 30 de março de 2012

O QUE EU QUERO


Nem as músicas que saem do rádio do carro, nem este dia incerto, nem quente, nem frio, nem eu, acordada, com saudades de você, pensando em quantos dias não o vejo, nada está ajudando. As melodias não se harmonizam com meu dia, nem o balanço do carro me agrada. A moça de ontem, a mesma de hoje, está dando beijinhos no rapaz careca, de costas para mim, que passo e os vejo, igual a ontem, só que hoje, ela está sentada no colo dele. Isso me desagrada. Meu lado humano e perecível me incomoda. Troco a estação do rádio, há semanas vem tocando melodia contrária a mim, algo saudosista! Quero batida forte, gosto de cantoras com voz forte e cantores de voz fraca. Gosto do ritmo, da cadência, isso me leva até você.

Perdi você faz tempo, nem conto mais esse espaço entre nós dois, quando podíamos nos olhar e nos tocar, nem conto, pois, não se conta tempo sem fim. Contam-se os beijos da moça nos lábios do homem calvo; contam-se as voltas do cordão que trago no pescoço, simpatia para lhe rever; contam-se todas as histórias que ainda não pudemos contar! Quero acabar com esta saudade. Quero o novo, quero saber teu novo nome, bem ao certo, para que eu possa gritá-lo bem alto na hora do gozo.

Por Suzana Guimarães

terça-feira, 20 de março de 2012

UMA TAÇA DE VINHO VELHO, UMA XÍCARA DE CAFÉ TRUFADO E O ÚLTIMO MINUTO, ATRÁS.

(fotografia, por SCG)



Bateu-me uma loucura branda, daquelas que ninguém vê, só nós mesmos. Uma taça de vinho achado no fundo da geladeira, uma xícara de café trufado por cima e a certeza de que você é minha ilusão, a das mais absurdas que já tive em minha vida; isso tudo, agrupado num corpo exausto e carente, principalmente descrente, sim, cansado da guerra do amor. Tolices! Insanidades que vivemos ou nos colocamos a vivenciar: amor não guerreia. Mas, a tatuagem também invisível, igual à da loucura, recita calmamente: desista de tuas lutas inglórias, desista destes olhos, desista do nome que lhe chama na madrugada, desista de ser o nome que lhe é sussurrado ao pé da cama. Desista dos olhos postos em você, porque outros já fizeram o mesmo e você continua a duvidar de suas poucas armas... nessa guerra maldita! Desista.

Bateu-me essa loucura que remédio não resolve, e eu me remexo toda, vasculho a última vez em que o vi, dois minutos atrás, e revejo o caminho que poderíamos percorrer ou mesmo ultrapassar. Bom, com certeza, todo encontro só começa após a corrida silenciosa ou escandalosa, de obstáculos.

Sim, você é o dono da mais absurda de minhas querências. Renego-o, disfarço, finjo, mascaro. Só não me peça que eu levante os olhos para você, pois, sei, verá o desejo louco e manso, renegado por ser absurdo, mas existente, correndo, escorrendo, ultrapassando a pele que moldura o lago onde você poderá se perder.


Por Suzana Guimarães

segunda-feira, 12 de março de 2012

PARA TI

(Suzana Guimarães - arquivo pessoal)
 
 
Tua boca entreaberta
Feito a curva que o rio faz antes de alcançar o mar
É onde desenhei você e eu
Me arde... sou casal sem par
Dê-me tuas pernas para que as minhas se abram
Dê-me tuas costas e teu peito
Quero ler teu corpo folha a folha, água por água, de onde se soltam os laços de tua alma
Dê-me a oferta de nossa história que só você carrega, eu não - andei perdida e sem jeito
 
Entreabre o véu d`água, pra ver. Já estou nua.
 
 
Por Suzana Guimarães


 

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

SOU ÁRVORE, NÃO CONHECI O REI



Meus textos são frutos que caem de mim, árvore velha e marcada, quase amarga ao toque, porém, ainda cheia de flores e frutos. Alguém me lê na Romênia. Acredito que seja a mesma pessoa, nem sei por quê. Lembro-me então da bailarina que dançava para o rei. Mas, eu não sou bailarina, e não existe o rei, sequer cheguei a segurar a coroa por entre as revoltas dos meus cabelos... nunca fui a amante preferida ou cortesã desejada. Nada vi de mil noites, e por mim, ninguém montou em um cavalo para me salvar, eu me salvei sozinha, todas as vezes, as incontáveis vezes, e gravei meus atos, no livro dos sonhos, para não me esquecer. E também desconheci o desespero da exigência da lembrança, não houve reis para me cobrá-la. Sou apenas aquela que passou, correndo por arvoredos, mergulhada nas sombras da noite, aclamada pela valentia; sou aquela que matou quem se atreveu desejar ser rei, aquele que morreu de medo, e, medo é o meu escudo, meu punhal e meu próprio túmulo. Sou aquela que matou o rei que não existiu. Dos novecentos fantasmas, nenhum apareceu para me assustar, inclusive o rei, que me daria o susto do amor.

Mais provável que assim seja, um único leitor, absorvido pelos frutos que deixaram a árvore, ou, entretido com o reflexo que vê. Ele ou ela me lê silenciosamente. Quando venta em meus galhos e minha copa balança freneticamente, eu me desgosto. Ando procurando saber até onde vão meus galhos, minha sombra, o odor que de mim, exala. Sei das raízes, mas, elas não me atraem tanto quanto antes, pois sei que viverei enquanto as possuir e isso me basta. Eu me desgosto com o barulho das ventanias porque causa em mim ânsia, por querer saber até onde tudo em mim chega e o que posso ainda descobrir em todo aquele que em mim se encosta, em lânguido prazer, ou devassa revelação. Constato, ao ler o nome do país, que também passei por lá, e hoje, sou memória, sou o tempo estagnado.


Sou árvore. Não fui bailarina. Não fui amante do rei. Não roubei o rei. Não rezei para o rei, não entreguei meu corpo como oferenda, sou Suzana. Antes que ele pudesse estender os braços longos para me alçar, cortei a veia, e, hoje, corto a raiz da árvore. Que morra seca, sedenta, de tanto pedir por água.


Por Suzana Guimarães


(Nota: texto originalmente publicado em meu outro Blog  "O medo de Suzana", em 29 de janeiro de 2012.)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

UMA CARTA PARA VOCÊ QUE MORREU

(fotografia, por SCG)


Nota: Antonio Cláudio Zamagna, o Tuca, pediu-me, em janeiro de 2010, uma carta, "...uma carta dando conta de um momento ou período de intensa felicidade a... um morto muito querido".

Ele disse que irá respondê-la, se você quiser conhecê-lo, vá ao DS, clica AQUI

Enquanto me mantenho afastada, enquanto descanso e desenho novos caminhos para mim, enquanto estanco as águas do rio, deixo-a à deriva, a carta, quem sabe, aos céus, já que a vida parece mesmo ficção.




                                   Los Angeles, 9 de novembro de 2011.
                                               

                                                 Querido,


É manhã, sinto frio, a neblina cobre o meu carro que segue a estrada, longa, silenciosa, solitária. É outono. Os ventos gelados batem no meu rosto, pois eu insisto em querer sentir o cheiro de maresia, mesmo que isso arda meus olhos... ah, as coisas do mar lembram-me você. Faz tempo, muito tempo... Hoje, é seu aniversário de morte. Como é que podemos contar, como que celebrando, o desaparecimento, o fim, o nada, o que nunca mais será? O que acabou. 

Engraçado, estou tendo um "déjà vu"... Lembra-se? Minhas coisas e eu, meus jeitos... já escrevi esta carta antes. Já vi essa cena. E posso então voltar para trás, largar minhas inseguranças e a vontade de nunca mais lhe falar ou pensar em você. Não se pensa em mortos, não se fala com mortos. Será? Será que deliramos ao fazermos isso? Então, encontro-me em pleno delírio.

Eu fui feliz, sabe... Fui feliz durante aquele tempo, um pouco antes de você morrer. Eu fui feliz porque você foi uma febre, um carinho, um contato de mansinho que explodiu. Fiquei doente, sim, você me adoeceu. Mas, eu me sentia completa ao seu lado. Creio que você também. Nós nunca havíamos sido tão felizes. Éramos um, o caminho encontrado do outro.

Mas, a morte ceifa.

Você, meu sonho. Será que eu lhe disse o quanto realmente o amei, o desejei, o metamorfoseei para meus próprios gostos, como se eu fosse sua dona, proprietária? Não, claro que não. Quando eu ia dizer, veio a doença e levou você de mim.

Os pássaros voam baixo, mas céu escuro por aqui não é sinal de chuva. É apenas céu escuro e nada mais. Mas, por que os pássaros pressentem algo que eles sabem muito bem, não acontecerá?

Lembra-se da nossa primeira e última viagem? Lembra-se? Você se lembra? Eu queria saber, eu sempre quis saber a verdade, mas...

Veio a chuva forte. O nosso carro quebrou. Estávamos indo para um lugar tão lindo, florido, tantas montanhas, tanto silêncio... o mesmo de agora! Lembro-me bem, o carro parou no meio daquela escuridão e nós ficamos sozinhos. Eu poderia ter feito amor, delicado amor, com você, eu poderia...

E novamente estou tentando me enganar. Fizemos amor, sexo, qualquer nome para aquela coisa, insana, desvairada. Nada me importava muito, nem passado e muito menos o futuro. Seriam poucos dias, contados nos dedos... eu não havia bebido aquele vinho do jantar, mas fiquei com amnésia. Perdi as cenas em minha memória. Ficou apenas a sensação palpável de morte. Lembro-me bem, desde o primeiro toque, ponta de dedo num dos cantos da minha boca até o corpo todo por sobre o meu. Segredo, segredo, secreto.

O carro ficou apertado, e você foi me ajeitando, ajeitando, deslizando-se por sobre mim até que rolamos pra fora. E a chuva forte inundou por horas, por meses, por anos, até agora...

Mas, por que será que os pássaros voam baixo se não irá chover?

Foi a chuva que o matou ou fui eu ou fomos nós? Foi o nosso pecado? Foi o nosso sagrado?

Você que tanto me adoeceu... até hoje vivo o desequilíbrio físico... você que tanto me levou ao pico e ao fundo, a um afirmar e negar amor, à uma desordem geral em meus mais devotados arranjos de como se viver em paz, eu que tanto almejei o silêncio de uma vida solitária... você tanto me desequilibrou... e quem morreu foi você.

Febre alta, pulmões esgotados, dias numa cama de hospital, delirando, gritando, agitando braços, querendo fugir, querendo sem consciência.

Respiro fundo, tento prender o cheiro de maresia que sinto.

Eu era uma mulher que você punha no colo, dava silêncio, dava palavras, discursos inflamados, o melhor e também o pior de si. Você era o homem que combinava com a cor que sempre gostei para roupa de cama, papel de parede, travesseiro, flor e champanhe, cor de meia-luz... eu fazia você rir e chorar num mesmo segundo, e eu era só promessa. Você era um rio onde eu navegava sem saber nadar muito bem.

Fomos felizes! Isso é o que importa. Sigo em frente, feito os pássaros, fazendo movimentos sem muito pensar, sem questionar. Sigo.

Quando eu chegar em casa, escreverei essa carta para você.


Por Suzana Guimarães

domingo, 22 de janeiro de 2012

BLOG TEMPORARIAMENTE FECHADO

fotografia, por SCG

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

SOBRE NÓS

 
 
 
 Você me cala

quando me toca

quando pronuncia meu nome

quando desfaz distância


Quando para o tempo que corria para mim

a vida gigante que me engolia

você me percebe

distante, ausente

e eu toda paro


É porque fico a perscrutar

o silêncio que nos envolve

Ou a gritaria de nossos poros


É porque soa em nós uma antiga reza

um desejo teso

inconformado

resguardado

de oratório


Nossos corpos

apenas extensão

de nossa almas abençoadas

de um amor calado entre mãos


É isso, corre em teu corpo a revelação!



(Por Suzana Guimarães)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Conto "CEGUEIRA", na voz de LUIZ FERNANDO ROCHA








Ela, na janela, vendendo frutas. Ele passa toda tarde e toda tarde diz para ela "eu a amo, eu a amo". Ela, na janela, vendendo frutas, sabe, ele não a ama, ele ama a moça rica e linda. Ela é pobre, apenas vende frutas, expostas, exóticas, na cesta rasa. Ela é cega, ela não o vê, mas ouve toda tarde "eu a amo, eu a amo". Ela queria cortar os cabelos, ela queria conhecer o mundo, saber a cor dos olhos dele, não voltar nunca mais para casa. Ela ouve os passos dele ao longe, sabe que é ele, sente o cheiro de aldeia. Ele passa toda tarde para contar para ela, pois ele tem certeza, com a moça rica e linda ele provará todos os frutos do mundo, subirá todos os montes. Ela também tem cheiro de aldeia.

E os cheiros se casam bem.

Ela, na janela, não tem tristeza, tem vazios, dois vazios, os dos olhos.

Ele canta para ela o amor dele, que é puro, é terno, juvenil, muito melhor que todas aquelas frutas, que só murcham.

Ela, um dia, come a fruta do dragão, o melão com chifres, todas as rambutans e uma mangostim, enquanto o escuta, atenta. Depois, fecha a janela e para lá, volta não.

Ele não fala mais "eu a amo, eu a amo"... Ele anda pela cidade e não se ouve mais aquele som cantado, de amor romanceado.

Ele não sabe, mas ela ri.



Por Suzana Guimarães


Notas:
1.Texto anteriormente publicado aqui (clica em cima).
2. LUIZ FERNANDO ROCHA é o dono do Blog "Buteco do Lufe" (clica em cima).