Ilustração por

Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

SOU ÁRVORE, NÃO CONHECI O REI



Meus textos são frutos que caem de mim, árvore velha e marcada, quase amarga ao toque, porém, ainda cheia de flores e frutos. Alguém me lê na Romênia. Acredito que seja a mesma pessoa, nem sei por quê. Lembro-me então da bailarina que dançava para o rei. Mas, eu não sou bailarina, e não existe o rei, sequer cheguei a segurar a coroa por entre as revoltas dos meus cabelos... nunca fui a amante preferida ou cortesã desejada. Nada vi de mil noites, e por mim, ninguém montou em um cavalo para me salvar, eu me salvei sozinha, todas as vezes, as incontáveis vezes, e gravei meus atos, no livro dos sonhos, para não me esquecer. E também desconheci o desespero da exigência da lembrança, não houve reis para me cobrá-la. Sou apenas aquela que passou, correndo por arvoredos, mergulhada nas sombras da noite, aclamada pela valentia; sou aquela que matou quem se atreveu desejar ser rei, aquele que morreu de medo, e, medo é o meu escudo, meu punhal e meu próprio túmulo. Sou aquela que matou o rei que não existiu. Dos novecentos fantasmas, nenhum apareceu para me assustar, inclusive o rei, que me daria o susto do amor.

Mais provável que assim seja, um único leitor, absorvido pelos frutos que deixaram a árvore, ou, entretido com o reflexo que vê. Ele ou ela me lê silenciosamente. Quando venta em meus galhos e minha copa balança freneticamente, eu me desgosto. Ando procurando saber até onde vão meus galhos, minha sombra, o odor que de mim, exala. Sei das raízes, mas, elas não me atraem tanto quanto antes, pois sei que viverei enquanto as possuir e isso me basta. Eu me desgosto com o barulho das ventanias porque causa em mim ânsia, por querer saber até onde tudo em mim chega e o que posso ainda descobrir em todo aquele que em mim se encosta, em lânguido prazer, ou devassa revelação. Constato, ao ler o nome do país, que também passei por lá, e hoje, sou memória, sou o tempo estagnado.


Sou árvore. Não fui bailarina. Não fui amante do rei. Não roubei o rei. Não rezei para o rei, não entreguei meu corpo como oferenda, sou Suzana. Antes que ele pudesse estender os braços longos para me alçar, cortei a veia, e, hoje, corto a raiz da árvore. Que morra seca, sedenta, de tanto pedir por água.


Por Suzana Guimarães


(Nota: texto originalmente publicado em meu outro Blog  "O medo de Suzana", em 29 de janeiro de 2012.)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

UMA CARTA PARA VOCÊ QUE MORREU

(fotografia, por SCG)


Nota: Antonio Cláudio Zamagna, o Tuca, pediu-me, em janeiro de 2010, uma carta, "...uma carta dando conta de um momento ou período de intensa felicidade a... um morto muito querido".

Ele disse que irá respondê-la, se você quiser conhecê-lo, vá ao DS, clica AQUI

Enquanto me mantenho afastada, enquanto descanso e desenho novos caminhos para mim, enquanto estanco as águas do rio, deixo-a à deriva, a carta, quem sabe, aos céus, já que a vida parece mesmo ficção.




                                   Los Angeles, 9 de novembro de 2011.
                                               

                                                 Querido,


É manhã, sinto frio, a neblina cobre o meu carro que segue a estrada, longa, silenciosa, solitária. É outono. Os ventos gelados batem no meu rosto, pois eu insisto em querer sentir o cheiro de maresia, mesmo que isso arda meus olhos... ah, as coisas do mar lembram-me você. Faz tempo, muito tempo... Hoje, é seu aniversário de morte. Como é que podemos contar, como que celebrando, o desaparecimento, o fim, o nada, o que nunca mais será? O que acabou. 

Engraçado, estou tendo um "déjà vu"... Lembra-se? Minhas coisas e eu, meus jeitos... já escrevi esta carta antes. Já vi essa cena. E posso então voltar para trás, largar minhas inseguranças e a vontade de nunca mais lhe falar ou pensar em você. Não se pensa em mortos, não se fala com mortos. Será? Será que deliramos ao fazermos isso? Então, encontro-me em pleno delírio.

Eu fui feliz, sabe... Fui feliz durante aquele tempo, um pouco antes de você morrer. Eu fui feliz porque você foi uma febre, um carinho, um contato de mansinho que explodiu. Fiquei doente, sim, você me adoeceu. Mas, eu me sentia completa ao seu lado. Creio que você também. Nós nunca havíamos sido tão felizes. Éramos um, o caminho encontrado do outro.

Mas, a morte ceifa.

Você, meu sonho. Será que eu lhe disse o quanto realmente o amei, o desejei, o metamorfoseei para meus próprios gostos, como se eu fosse sua dona, proprietária? Não, claro que não. Quando eu ia dizer, veio a doença e levou você de mim.

Os pássaros voam baixo, mas céu escuro por aqui não é sinal de chuva. É apenas céu escuro e nada mais. Mas, por que os pássaros pressentem algo que eles sabem muito bem, não acontecerá?

Lembra-se da nossa primeira e última viagem? Lembra-se? Você se lembra? Eu queria saber, eu sempre quis saber a verdade, mas...

Veio a chuva forte. O nosso carro quebrou. Estávamos indo para um lugar tão lindo, florido, tantas montanhas, tanto silêncio... o mesmo de agora! Lembro-me bem, o carro parou no meio daquela escuridão e nós ficamos sozinhos. Eu poderia ter feito amor, delicado amor, com você, eu poderia...

E novamente estou tentando me enganar. Fizemos amor, sexo, qualquer nome para aquela coisa, insana, desvairada. Nada me importava muito, nem passado e muito menos o futuro. Seriam poucos dias, contados nos dedos... eu não havia bebido aquele vinho do jantar, mas fiquei com amnésia. Perdi as cenas em minha memória. Ficou apenas a sensação palpável de morte. Lembro-me bem, desde o primeiro toque, ponta de dedo num dos cantos da minha boca até o corpo todo por sobre o meu. Segredo, segredo, secreto.

O carro ficou apertado, e você foi me ajeitando, ajeitando, deslizando-se por sobre mim até que rolamos pra fora. E a chuva forte inundou por horas, por meses, por anos, até agora...

Mas, por que será que os pássaros voam baixo se não irá chover?

Foi a chuva que o matou ou fui eu ou fomos nós? Foi o nosso pecado? Foi o nosso sagrado?

Você que tanto me adoeceu... até hoje vivo o desequilíbrio físico... você que tanto me levou ao pico e ao fundo, a um afirmar e negar amor, à uma desordem geral em meus mais devotados arranjos de como se viver em paz, eu que tanto almejei o silêncio de uma vida solitária... você tanto me desequilibrou... e quem morreu foi você.

Febre alta, pulmões esgotados, dias numa cama de hospital, delirando, gritando, agitando braços, querendo fugir, querendo sem consciência.

Respiro fundo, tento prender o cheiro de maresia que sinto.

Eu era uma mulher que você punha no colo, dava silêncio, dava palavras, discursos inflamados, o melhor e também o pior de si. Você era o homem que combinava com a cor que sempre gostei para roupa de cama, papel de parede, travesseiro, flor e champanhe, cor de meia-luz... eu fazia você rir e chorar num mesmo segundo, e eu era só promessa. Você era um rio onde eu navegava sem saber nadar muito bem.

Fomos felizes! Isso é o que importa. Sigo em frente, feito os pássaros, fazendo movimentos sem muito pensar, sem questionar. Sigo.

Quando eu chegar em casa, escreverei essa carta para você.


Por Suzana Guimarães

domingo, 22 de janeiro de 2012

BLOG TEMPORARIAMENTE FECHADO

fotografia, por SCG

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

SOBRE NÓS

 
 
 
 Você me cala

quando me toca

quando pronuncia meu nome

quando desfaz distância


Quando para o tempo que corria para mim

a vida gigante que me engolia

você me percebe

distante, ausente

e eu toda paro


É porque fico a perscrutar

o silêncio que nos envolve

Ou a gritaria de nossos poros


É porque soa em nós uma antiga reza

um desejo teso

inconformado

resguardado

de oratório


Nossos corpos

apenas extensão

de nossa almas abençoadas

de um amor calado entre mãos


É isso, corre em teu corpo a revelação!



(Por Suzana Guimarães)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Conto "CEGUEIRA", na voz de LUIZ FERNANDO ROCHA








Ela, na janela, vendendo frutas. Ele passa toda tarde e toda tarde diz para ela "eu a amo, eu a amo". Ela, na janela, vendendo frutas, sabe, ele não a ama, ele ama a moça rica e linda. Ela é pobre, apenas vende frutas, expostas, exóticas, na cesta rasa. Ela é cega, ela não o vê, mas ouve toda tarde "eu a amo, eu a amo". Ela queria cortar os cabelos, ela queria conhecer o mundo, saber a cor dos olhos dele, não voltar nunca mais para casa. Ela ouve os passos dele ao longe, sabe que é ele, sente o cheiro de aldeia. Ele passa toda tarde para contar para ela, pois ele tem certeza, com a moça rica e linda ele provará todos os frutos do mundo, subirá todos os montes. Ela também tem cheiro de aldeia.

E os cheiros se casam bem.

Ela, na janela, não tem tristeza, tem vazios, dois vazios, os dos olhos.

Ele canta para ela o amor dele, que é puro, é terno, juvenil, muito melhor que todas aquelas frutas, que só murcham.

Ela, um dia, come a fruta do dragão, o melão com chifres, todas as rambutans e uma mangostim, enquanto o escuta, atenta. Depois, fecha a janela e para lá, volta não.

Ele não fala mais "eu a amo, eu a amo"... Ele anda pela cidade e não se ouve mais aquele som cantado, de amor romanceado.

Ele não sabe, mas ela ri.



Por Suzana Guimarães


Notas:
1.Texto anteriormente publicado aqui (clica em cima).
2. LUIZ FERNANDO ROCHA é o dono do Blog "Buteco do Lufe" (clica em cima).

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

VOCÊ, O MISTÉRIO E EU



Ontem, fiz um texto enquanto eu dirigia. Anteontem, também. Eu os perdi antes que eu pudesse escrevê-los. Morreram em meio à música que tocava no carro. Tenho cartas para escrever, agradecimentos por fazer, livros para ler e tudo o que consigo é colocar as roupas para lavar na lavadora, depois, na outra máquina para secá-las. Consigo também estender os cobre-leitos das camas. Lavo à mão tudo o que não cabe na lavadora de louças e me perco por horas aqui, nesta outra máquina, em frente à uma tela que arde meus olhos. E é só! Não leio, não escrevo, não durmo, mal como. E só. Espero não sei o quê. Não estou esperando a criação, tenho certeza, ela não surge nos momentos de vazio. Sentada, espero o nada. E o nada não procria.

Não telefonei para os amigos distantes, desejando boas festas, bom recomeço, não organizei gavetas que prometi arrumar; o livro de receitas continua lotado de papéis avulsos, soltos, à espera de uma certa ordem. Não replantei as folhagens da varanda, não troquei de carro e nem a cor predileta para as unhas... sequer sonhei acordada. Mas, há um troço que percorre meu corpo por dentro, bem mais forte que minha inércia. Dizem que se chama seiva da vida. Esse troço faz eu me lembrar de você. Não fiz muita coisa, inclusive desaprendi várias, mas com certeza, eu o encontrei, você existe, enfim, posso olhá-lo nos olhos, tocá-lo, você não é mais um desassossego de alma. Você faz parte do meu mistério. Carrego-o há tanto tempo que ele se moldou a mim. Os cachorros não se parecem com seus donos? Pois bem, o mistério ficou a minha cara e eu a cara dele. Não posso sair do nada e decifrá-lo, já que somos unidade. E andamos por aí, olhamos o entardecer, um lilás coroando a praia e só. É tudo o que faço. Depois, lavo a roupa, como qualquer comida, me entupo de água e me sustento no vácuo, um lugar secreto, aberto no corpo. Esperamos, o segredo e eu, esperamos você passar, pois só você tem a capacidade da revelação, só você pode me transmutar, sou apenas a velhice de mim mesma tentando a claridade que você carrega nos olhos sem ao menos perceber, de tão aderente e antiga. Incipiente.

E então, seguiremos: você, a revelação (a alma do meu extinto segredo) e eu, como se tanto tempo não houvesse passado, apenas recordado insistentemente por se saber único.


Por Suzana Guimarães