Ilustração por

Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



terça-feira, 22 de maio de 2012

ARANHAS LASCIVAS



Passou as folhas com rapidez, tinha pressa, quando viu a fotografia deles, as cabeças encostadas uma na outra, ele sorria. Ele sorria escondendo os dentes, macio... no olhar, determinação, ele estava bem, feliz. Ela sorria, parecia menina. O olhar dela se derramava em lassidão, como se tivesse acabado de fazer sexo com ele. Satisfeita.

Passou os dedos na ponta da língua, para ver mais, porém acabava ali. Respirou. Olhou e retornou inúmeras vezes. Um dia todo se passou, uma noite e outro dia, e, novamente, voltou àquela imagem. Ela estava, sim, lasciva. O olhar dizia, a boca em sorriso largo, e, algo mais.

Tentou pegar aquele algo mais. Impossível. As cabeças deitadas no chão olhavam para a câmera.

Voltou os olhos para ele. Era ele a causa.

Tocou os lábios, fechou os olhos. Desceu dois dedos pelo pescoço, tocou a ponta da coxa, à altura do joelho. Rodou a mão, calmamente. Prendeu a respiração e olhou novamente para ele, sentiu pudor, como se ele a visse, como se ele soubesse. Desfez o pensamento, tirou mecha invisível de cabelo do rosto, encostou a mão no queixo, sentiu um calor saindo por detrás do joelho. Parece que homem fica feliz e mulher satisfeita, pensou. Deve ser isso, aquelas mãos fizeram a mulher, o corpo arredondado. Homem vem pronto, mulher é feita.

Pousou os olhos nos olhos dele, a causa. Pensou em suas próprias consequências. Um homem daqueles poderia lhe custar um sanatório, porque ele não fazia esforço, ele apenas sorria, levemente.

Pela manhã, acordou sobressaltada. Uma aranha de pernas compridas passeava pelo teto do quarto. Acendeu a luz, quarto escuro. Iria matá-la, com certeza. Levantou-se. De pé, pescoço esticado, viu que nada havia. Deitou-se. Acalmou a aranha que havia em si.

Por Suzana Guimarães

sexta-feira, 11 de maio de 2012

MAIO



Sidney rega as plantas todos os dias e diz nos esperar. Ele remove a terra, afasta e mata pragas, protege os morangos no inverno. Para Sidney, vinte anos ou dois dias é a mesma coisa, e ele diz nos esperar. Ele parece muito certo, mas não é alegre, muito menos triste, ele se veste de luto e disse esperar maio. Ah, quantos maios já se passaram! Quanto tempo, quantos caminhos que se desfizeram e outros tantos que se criaram ou retomaram? Quanto sereno caiu e geada e chuvas e um calor insuportável ameaçou aquele sítio? Sidney não conta, não faz cálculos, ele olha os céus, escuta o barulho das cobras que se arrastam pelo chão e prevê tudo aquilo que só ele sabe, e parece que todo o mundo sabe e também as luas e os raios, as singelas florzinhas de mato que crescem em desalinho, cobrindo a relva que também sabe. Só nós dois não sabemos.

Nós dois jogamos cartas. Eu lhe dou uma sequência, você me dá única carta e me bate. Inverto o jogo e tudo se ausenta, inclusive você. Ou seria justo o contrário? Não importa. Sidney diz nos esperar e eu espero mais dois dias, e, mais dois só, pois, assim que entrar maio com céu de primavera - até onde já se prenuncia inverno - eu assino a carta que não escrevi, não enviei, sequer entreguei, uma carta de amor. Descobri que só se pode dizer adeus, amando, pegando em mão invisível, tocando dedos que não existem e dizendo, com carinho e ternura, que é hora de nos desfazermos de nosso pacto, oculto laço que rói minhas fibras internas.

Era maio quando nós nos deixamos. Seria em maio que nós nos reencontraríamos.

Sidney enviou-me um mapa, marcou com setas e um 'x' enorme, ele insiste em nos esperar, disse que há morangos prontos para serem mordidos e um campo onde poderemos nos sentar para ver os dias se findando. Sidney ama o nosso amor; nós, não.


Por Suzana Guimarães

sexta-feira, 4 de maio de 2012

É MAIO, AS CARTAS SERÃO DIÁRIOS?


(fotografia, por SCG)



Los Angeles, 3 de maio de 2012.


Querida Lunna,


O silêncio é quase absoluto na casa. Todos se deitaram. Ainda não viramos o dia, mas o fato de estar aqui, agora, beirando a madrugada, sozinha, cortinas quase fechadas, quase escuro, isso me felicita, e isso deve ser maio sorrindo para mim.

Ouço apenas o som do teclado do meu laptop, a geladeira e o ar-condicionado que liga e desliga, liga e desliga... o barulho dele é alto, mas o ar gelado que me alcança rápido e o fato dele fazer suas pausas me agrada muito. O barulho de geladeira é uma recordação que carrego, das melhores. Lembro-me de casa cheia, alugada na praia, meninos e meninas espalhados pelos chãos, e de uma geladeira que atravessava com seu som nossos sonhos. Ao lado, dormia, alheio a tudo, e roncando às alturas, o cachorro da família... noites na praia, quando a minha única preocupação era saber se iria fazer sol ou não no dia seguinte.

Há única luz que me alcança, que não vem do computador, é um abajur ao lado esquerdo da minha mesa. Design moderno. Cinza, com um pescoço comprido e móvel e eu posso jogar o facho de luz para onde bem entender. Ganhei de presente do meu filho um ramo de lavandas, amarrado numa corda de sisal, está preso nesse abajur, ele disse que era para perfumar. Mas, o que perfuma mesmo são as fotografias emolduradas, próximas desse abajur, elas sorriem para mim.

E sorrindo, voltaram os dias, as vontades; antes, tudo parecia desconectado, balões soltos no céu, à deriva. Meses de desequilíbrio físico, doenças incomodando a paz da alma, um enorme descrédito no ser humano, um balanço forçado, ocasional, mas picando feito agulha no nervo, tudo isso parecia não ter fim, corrente do mal a se arrastar atrás de mim. Até que outro dia, eu sentei e chorei. Cansei. Maio chegou, algum anjo se sentou à beirada da minha cama, alguém tocou em mim com olhar doce de despedida e isso não me pareceu triste, apenas contextual. Ah, minha amiga, ando pensando que amor é contextual! Partes anteriores se juntam à outras do texto e explicam tudo. Eu não sei dos outros, mas passei a vida fugindo do contexto em si. Disfarcei bastante, fingi que não estava prestando atenção, fiz um certo corpo mole, quis, não querendo querer, mas agora venho me freando, apontando os momentos de falha e corrigindo-me como a professora no primário, que repetia, repetia e ninguém parecia ouvir. Só que agora, estou atenta. Pulmões abertos, corpo em prontidão.

É maio e ele parece profecia de mãe. Um mês que cheira à flores de laranjeira, que tem um céu pintado de azul do mar e por aqui, botões brotam dos ramos, ansiosos por aparecer, a palmeira Havaiana enche-se de brotos verdes, após meses estática em paus. Estou cultivando ervas, e aumentei a minha coleção de cactos, esses, sempre me fascinaram, pela beleza exótica e pela resistência.

Já nem ouço mais o barulho da geladeira, me perdi da contagem de liga e desliga do ar-condicionado, ficou o som do teclado, o som da minha voz interna escrevendo esta carta, pois eu me perco em cartas, assim como me perco nos dias lindos, a alegria é tanta que desligo o sono.

Mas, é dia novo, nascendo. Não tenho uma vista bonita que me leva para um horizonte adormecido, mas tenho a sensação de que voltei, e voltei melhor, mais forte e ponderada, disposta a cuidar bem do jardim, renegando sem dor ou remorso as flores e os cravos que amargam meus toques doces, sossegados... tolice acreditar que o belo não machuca! Agora, eu quero escolher as folhagens do meu canteiro, arrancar sem dó o que não quero e aguar diariamente as mudas que ainda virão, dispostas a se aconhegarem neste meu coração afofado pelos ventos que maio traz.

Esqueci-me de perguntar por ti! Onde você deixou tua última xícara de chá? Teu último buquê de flores, a última imagem de ontem? Escreva-me. Conte-me sobre o sótão e seus segredos, conte-me também sobre as últimas receitas, diga-me do gosto que ficou após o último vinho. Conte-me sobre ontem e enumere tua lista para o amanhã, eu estarei à espera.

Beijos!

Suzana Guimarães

terça-feira, 1 de maio de 2012

REVELAÇÃO



Com quantos desertos eu te fiz? Sentei na areia para contar. Vi a vastidão sem fim, um dia que se acabava pouco a pouco, da mesma forma como foi sentir você, pouco a pouco... apenas percebi quando eu não sabia mais até onde ia meu nome em ti e teu nome em mim. Faz silêncio, escuta! Eu te fiz mapa, bússola, lagos, rios e mares, enquanto eu atravessava desertos. Quanto andei! Quantas vezes parei? Descobri você quando as areias quentes me tombaram e eu caí, exausta.  Percebi que há solidão em paz, que você pode ser qualquer coisa, um grão de areia a molhar meus olhos, um lago inventado na sede, o grito do pássaro que voa alto ou o que bica o chão, procurando alimento. Com quantos caminhos eu te fiz? O movimento mais monótono, a batida mais constante, nada se iguala... nada se compara, pois eu fui além de mim para te alcançar, fui longe e perto, mas não parei e ultrapassei a vontade dos humanos. Faz silêncio, escuta, você pediu a resposta, eu lhe deixo a pergunta. Até onde eu andei em ti?

Escreva meu nome cem vezes cem, o tempo que contei, e enterre-o nos grãos mais suaves que te tocarem. Leve-me com você, pois já posso te tocar, depois do tanto que te fiz, faço-me grão.

Por Suzana Guimarães