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Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



sábado, 27 de abril de 2013

UMA CARTA DE SUZANA

  
Los Angeles, primavera de 2013.

                                                  
Querido Teopha,

Fiquei longo tempo sem lhe procurar porque perdi seu endereço, viajei muito e deixei de lado a prisão dos telefones celulares. Decodifiquei-me para conhecer-me melhor, e, nesse movimento, alcancei satisfação, mas também algumas mascaradas verdades. No bolso de um casaco de frio, encontrei um pedaço de papel com seu endereço, pensei então em dar-lhe notícias de mim.

Lembrei-me de você e de suas últimas palavras: "Eles têm medo de Suzana". Sim, escrevo-lhe para dizer que eu sei, e que, por isso, pouco vi do amor. Eu queria escrever um livro, "O Amor de Suzana", mas o tempo da ilusão se foi num só golpe de vento. A alguns não é dado o direito à reciprocidade do amor, ele é sempre um triste anjo de asa podada.

Alguma coisa havia entre o tempo que corria e o que eu realmente via. Foi longa a trajetória, carregada de acordes pouco afinados, onde encontrei uma gente louca a falar de utopia, na possibilidade da perfeição, e percebi, no caminho, que a perfeição tem a cara torta.

Eu tomava café e ele, um homem que conheci na fila do pão, falava sobre seus projetos, chamava-me de querida, estava sempre à minha espera, contudo, se eu não estivesse presente, ele se fazia mudo e eu pensava em postes. Gente-poste, gente que se cala e parece inatingível. E nos parques, ele compunha, estranhas, mas, delicadas músicas para mim, ele era todo ambíguo, mas se vestia como todos, para parecer ser igual, mais um deles.

Foi um tempo estranho, eu tinha sempre os mesmos sonhos, plantando papoulas na Transylvânia, pintando quadros em Madri, vendendo ostras numa ilha perdida da Grécia. Havia uma casa, toda branca, toda pronta, e, nos fundos dela, ele escrevia longas cartas para mim, dizendo de seu cotidiano de pescador de almas. Ele era poeta. E eu era sua musa encantada, um livro inteiro a ser lido num só dia, antes que o sol castigasse todas as flores que ele plantava para mim. Às vezes, ele me contava histórias e eu nunca sabia serem verídicas ou não.

Uma pergunta insistia: por que os homens se faziam tão calados? Por que pediam a minha voz se nunca faziam coro, um dueto, um mínimo de arranjo? Eu nunca saberia, nem que duas vidas eu vivesse. Decidi então esquecer as músicas, o fingido poeta, e, ao me deitar para dormir, passei a tampar o maldito relógio que marca as horas em vermelho e parece lembrança a me dizer que é tempo, é hora, decidi esquecer porque descobri que nunca houve nada muito real, desde o dia em que eu disse a ele: "Olá, como vai? Eu me chamo Suzana".

Estou na sala de embarque de um aeroporto, alguém repete meu nome incansavelmente... tenho que ir, mas antes, tenho que lhe dizer: de todas as mentiras, você é a mais verdadeira.

Beijos,

Suzana

Por Suzana Guimarães

CARTA PARA O MEU QUERIDO

Fotografia gentilmente cedida por Raíssa Medeiros
Los Angeles, abril de 2013.
                                              
                                                 Querido,


Eu queria que chovesse, mas não chove nunca por aqui. Às vezes, alguns respingos que iludem e me fazem pensar que tudo pode ser vivido novamente. Mas, não é bem assim... eu sei, você sabe. Eu queria ouvir um pouco mais o som do sino dos ventos, ouvir os pássaros que passam pela varanda à minha frente, em displicente alegria. Eu queria algo que me aconchegasse e me livrasse do sentimento de ser sempre só. Eu nem sei por que lhe escrevo...

Escrever uma carta para você e não poder enviá-la é ofício dos piores pois alivia, mas relembra o desconforto de nossas inúmeras frustrações vividas, à todas elas, juntarei mais algumas dúzias de cartas até o dia em que eu entender que não o tenho mais, que nunca o tive, que nunca fui realmente sua. Enquanto esse dia não chega, perco o meu tempo - tempo? - contando-lhe minha rotina.

Depois que eu perdi você, passei a perder coisas, nunca sei onde estão meus óculos, minha agenda, onde larguei meu telefone celular. Parei de pintar as unhas, de hidratar a pele, esqueci na gaveta meus brincos e pulseiras, meu tempo para mim. Nos momentos de ócio, perco-me olhando o enorme mapa pendurado na parede da sala, leio e releio os nomes dos países, dos rios e oceanos como se fosse sempre a primeira vez.

Quantas vezes você morreu ou eu o matei? Inúmeras vezes, tantas que não cabem numa só existência. No chão, há mais pegadas nossas do que possamos imaginar. E em nossa história só há prefácios, resumos, rachaduras que sempre procuram nos engolir. Quantas vezes eu o deixei e quantas você pensou me ter? Eu acreditava ser sua, mas não era, descobri que existe enorme diferença entre "assimilate" e "adjusting". Assim, em Inglês mesmo e da forma que está escrito, pois, hoje, Mrs. G., minha professora, enfatizou isso tanto, mas tanto, que, eu, distraída, olhando, através da janela de vidro, as pessoas que passavam ao longe, me revi e refiz certos percursos passados. A verdade bateu-me à cara, nítida e brilhante. Eu pensei que amei, porém, eu apenas fiquei ajustando-me a você, procurando me adaptar. Eu não o assimilei. Assimilar é receber na veia aquilo que lhe é apresentado. Por que eu nunca o aceitei, por que eu o deixei partir e também me deixei ir, por que rejetei o nosso amor, fingindo ajustes, mas no fundo querendo ser parte da sua pele? Por que você fez o mesmo?

Outro dia, visitei uma cartomante. Ela disse que havia um eterno homem em minha vida, eu ri, claro! Todas dizem o mesmo! Porém, ela o descreveu em detalhes. Disse que fui sua preferida dentre todas as dançarinas de um cabaré do passado; a filha de um senhor de terras que não o queria por perto e que mandou lhe matar... fui aquela que embrenhou numa noite escura e solitária para procurar por você... e encontrá-lo tarde demais, machucado, derrotado, morto. Ela disse que completamos agora nosso sétimo encontro e isso significa que somos almas gêmeas. Fomos aventureiros, loucos, constantes, amantes, preferidos, escolhidos, mas só soubemos nos negar, enquanto juntos.

Troquei você por meus discos, meus livros e todos os meus delírios. Reneguei seu corpo só para não assumir a dor do meu sem o seu. Falei, falei demasiadamente e emudeci quando mais precisava dizer. Aceitei seus erros, mas não assumi o homem. E deixei você para todas as outras. Ri de nós, chorei por nós, briguei com a nossa história, recusei ser infeliz, mentira, sequer tentei.

Eu nem sei por que lhe escrevo... Cheguei tarde para recomeçar. Andei o mundo todo à sua procura por tão longo tempo, por tanto amor, por mim, por nós, por uma história que valesse a pena, para ser novamente sua, e, você, inteiro, de verdade, para mim, porém, enquanto eu pulava no primeiro trem que passava na estação, você descia dele e enquanto eu caminhava para o norte, você se decidia a bancar o forte e desbancar o mundo, no sul.

Não chove. Não ouço trovões, não sei mais o que são relâmpagos, nunca mais os vi. Não sei por que lhe escrevo... não sei por que ainda penso em nós, e nem por que a imagem de você, morto, naquela esquina, com os olhos abertos, vidrados e estranhamente gritando meu nome tornou-se minha vigília, em todas as posteriores noites frias e solitárias, onde se ouve apenas um relógio a caminhar seus ponteiros, indolentes.

A você, meu olhar parado no mapa.

Por Suzana Guimarães

sexta-feira, 5 de abril de 2013

PARA UM AMOR EM PARIS




Imagem do filme "Bem Amadas".



PARA UM AMOR EM PARIS, por Bruno Batista. Clique aqui.



Enviado por Franck Santos, clique aqui. para mim.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Um conto em francês - a um desconhecido.

 

 
Duas horas da tarde. Eu estava no supermercado, irritada, entre uma gôndola e outra, puxando o carrinho, passei por você. Mal o vi, mas bem ouvi suas palavras em Francês, ao telefone. Ah, você falava em Francês e o dia tornou-se ameno, envolto de aura em paz!
 
Noite atrás, sonhei que estava no Brasil, na mesma cidade, percorrendo as mesmas ruas, vendo a mesma gente. Euxarida das contrariedades, eu disse que iria voltar para casa e a minha casa, para surpresa minha, era na França, a minha casa.

Você me perguntou algo, eu respondi em Português: "leva-me para tua casa". Ah, claro, você falou em Inglês, disse-me "I`m sorry..." e arqueou uma das sobrancelhas, depois, sorriu. Eu sorri e fui andando.

Foi o som. O mais belo de todos. Tua voz ao telefone parecia saliva de algum deus, lubrificando a secura da minha terra, meu corpo seco e cansado.

Procurei por longo tempo um certo homem que não diria a palavra perfeita, mas faria o gesto esperado por mim. Muitos apareceram e eu me deixei enganar porque eu queria muito. Quando queremos muito, um Puro Sangue Inglês perde de nós na vastidão de um campo sem fim. Mas, o mundo é com fim, os campos também, assim como a ilusão de se estar com a pessoa procurada. Um dia, a gente acorda, cumpre nossos rituais e, no corredor de um supermercado, a gente brinca pedindo "me leva para casa" a um desconhecido. 
 
Sim, leva-me para tua casa, mostra-me teu mundo, diga-me tudo, da palavra certa para o copo, para a xícara, para as melhores comidas, para sabonete, escova de dentes, diga-me um corpo todo - o meu - em Francês. Fala, sussurra, canta, mesmo que eu nada entenda, mesmo com a certeza de que você é mais um passante, deixa-me caminhar no rastro calmo que tua voz me traz.

Se pudesse e eu gostaria tanto, se quisesse, diria-me "ne me quitte pas".
 

Por Suzana Guimarães