Ilustração por

Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



quinta-feira, 26 de junho de 2014

PARA A HORA MARCADA - que só eu vi


(fotografia gentilmente cedida por Daniela Ferreira)



(Para Douglas Zílio Coutinho)


A queda tinha hora marcada, seria na quinta-feira, ao meio-dia em ponto. Besuntei-me de um óleo qualquer, debaixo de sol, recitando suas últimas promessas, e você seria meu bruxo e eu, sua predileta. O abismo se abria com as horas, eu o chamava e ouvia o eco, já não sabia mais quem gritava por quem. Ah, meu bruxo, não me detém neste escuro que o embala, feito presente pra mim, este riso que diz, que diz me morderá... e eu me farei passiva, solícita, para no alto do meio do dia abocanhá-lo, sufocá-lo, enroscar a cobra que arde em mim, toda, lambuzada de ontem, do dia prometido, em você. 

Caminho devagarinho e vou ouvindo sua vontade de ler cada linha na minha pele marcada, cada traço que você não viu fazer.

Venha, meu bruxo, venha, é noite. Ofereça-me seu melhor aguardente e em troca eu lhe darei fel a lhe enroscar do pescoço ao ventre. Você me olha com olhos de gula; eu o olho com olhos de quem já o bebeu. 

Venha antes que amanheça e de você, eu já seja íntima. Venha rápido. 

Abismos gostam da estranheza. Sejamos amantes antes de amigos, os espelhos só refletem as ilusões. Todo o resto é quimera. Todo o resto é raso demais para nossa fome.




Por Suzana Guimarães

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Inventário


Imagem gentilmente cedida por Iracema Buscacio

Todos os amores são maiores que eu. Todas as histórias de amor ganham de mim. Todo o amor do outro brilha mais que meus opacos olhos, quase cegados por minha insanidade. Arranha-céus de amor, genuínos, verdadeiros; eu, um pedaço de quebrada de esquina, sob luz baixa, daquelas amareladas, daquelas decrépitas cidades das velhas, das órfãs, das preteridas, onde pousam moscas e aqueles cisquinhos que voam do asfalto. Eu, sempre, no final das contas, nada. Infeliz de mim que ouvi sem ter escutado, e, por isso, condenada por infinita gama de pecados que jamais cometi. Paguei pelo canto que outros cantaram.

Desinfeliz de mim que cri. Esperei debaixo de chuva pouca, ouvindo passos toscos, contando-os, fechando os olhos para os já possuir. Somente meus. E nada. E novamente outra chuva, mesma esquina, mesmas lembranças à meia-luz e, de novo, ouvindo sons, respirando-os, junto com cheiro de asfalto e fumo estragado. Estragado e velho.

Todos os amores sempre foram melhores que eu. E suas histórias. E de todos os pecados, o mais grave deles foi acreditar nisso, na beleza dos amores deles. Que nunca existiram. 


Por Suzana Guimarães

sexta-feira, 13 de junho de 2014

NA PRAÇA

(Desenho a lápis por Ana Maria B. C. Guimarães)

Na praça, ela sentou-se à minha direita. Falou, "Sem dente!". Nem olhei para ela, mas lembrei-me da extração de um siso dias atrás. Não havia inchaço em meu rosto. O sol batia em seu rosto avermelhado, eu me protegia com um chapéu. Contou-me de seus desamores: um tinha o dedinho do pé, o menor de todos eles, encurvado para cima. Ela olhava aquele dedo sempre, em todos os lugares, no chão, na cama, na dobra de um olhar descuidado. Outro, parecia um macaco, corpo de macaco, jeito de macaco, branco, de olhos verdes. O mais sexuado de todos cuspia enquanto falava, por isso, por anos, ela carregou uma sombrinha. À noite, quando se deitava, claro, fechava a sombrinha, mas o dia todo era para pensar só no incômodo. Hoje, não carrega mais. Por isso, o sol castigando o rosto, castiga, castiga, dizia. Cismou em falar de sua vulva, com ela, xingava os passantes. Sentei-me um pouco mais para a ponta do banco.

Ela disse-me que todos eles, sem saltar um, todos eles tinham alguma coisa a mais ou a menos, que parecia realçar, alguma coisa feia, alguma coisa fora do que ela gostaria que fosse. Muito corpo, pouco corpo. Muito cabelo, careca formato "bola de cristal". 

Então, ela pegava a sua vulva e xingava o mundo, segurando-a entre as saias do vestido. Agarrava com os dedos e tentava elevá-la.

Ela questionou-me, "Não haveria um só, pelo menos um, que ela olhasse de cabo a rabo e se sentisse satisfeita?"

Não tinha ilusões, exceto um sabugo de milho na bolsa, disse. 

Haveria de existir neste raio de mundo sem fim um homem que não cheirasse a outro homem, que não fosse sempre alguma coisa a faltar ou a sobrar? Um homem sem necessidade de interpretação, puro, raso, o suficiente. Para ela, o que bastava era olhar e não se deparar com coisa alguma que tivesse que desviar, esse seria o suficiente.

Na praça, ela sentou-se mais para perto de mim. Estendi o olhar. Vi lá longe pessoas passando. Enorme miopia emocional tomou-me de assalto. Sim, eu era "sem dente".

Por Suzana Guimarães