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Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



sexta-feira, 6 de março de 2015

Uma carta que o mar acolheu

( por Suzana Guimarães)




Los Angeles, 6 de março de 2008.




Querido,


Hoje, parei para ver o mar. Pensei em olhá-lo de longe, de dentro do carro, mas estou vendo tanta coisa e tantas pessoas a anos-luz de mim, que, dar uns passos, caminhar até o pier só poderá acrescentar, aliviar. O mar estava de um azul de primavera, silencioso a me dizer que ontem e hoje parece o mesmo, mas há greve no porto e o mar enfeitado de navios parados indica que a vida corre mesmo na mais óbvia das ausências...

Olho acima, no cabeçalho desta carta, escrevi 2008, vou deixar, mas estamos em 2015, com certeza! Foi nessa data que eu senti o beijo doce daquela senhora que nos leva para outros planos... eu já lhe disse? Talvez, sim, talvez, não... a gente se gasta em falatórios e silêncios inúteis como se a vida fosse eterna... Há sete anos, eu a vi, ela me tocou e se foi, disse que eu ainda tinha tempo. Ah, tempo! Não sei mais o que é isso. Só sei de mim, um corpo em frente ao mar, sobrevivente, duro, quase seco. Se secar, quebra e acaba, por isso, o desejo constante de inundações.


Talvez eu tenha partido com a senhora de vestes longas, sem olhos, apenas tato... Ficou um fantasma de mim, brincando de ser gente. Talvez, eu esteja enganando todos vocês, e já não mais esteja aqui. Fui e você nem viu. Mas, queria lhe dizer e por isso, escrevo-lhe: se eu soubesse que você se tornaria mais forte que o tempo, que eu iria sentir tanto a sua falta, eu teria aproveitado-o, usado-o e abusado em ânsia, como se fosse todo dia a última vez. Eu não sabia. Eu sabia que gostava de tê-lo por perto, por isso eu inventava encontros casuais. 


Agora, não há mais nada. E nem quero. Não posso mais regressar ao passado, mesmo sendo esse fantasma que lhe escreve. Tudo mudou, talvez, você também, talvez a vida tenha lhe socado tanto que você chegou a sonhar com a tal senhora e chamar por ela... 


Porém, você permanece insistentemente. Eu odeio onde você vive, apesar de amá-lo. Só que continuo aí porque sonho com você. Continuo sonhando, não digo nada porque não quero. Provavelmente não é importante para você, também tem isso. Mas eu continuo sonhando e eu não controlo isso, nem sei se é possível controlar sonhos.

Se eu soubesse, teria feito tudo diferente. Gastaria bastante até cansar, esgotar e enjoar. Eu deveria ter me enjoado de você. E hoje, aqui, em frente ao mar, eu seria mais leveza. 

Eu que sempre soube e sei de tudo, não soube de mim mesma, muito menos de você. Precisou a distância para eu enxergar. Irônico isso. Quanto mais distante, mais nítida a visão?

Como é que alguém pode derrubar tanta gente? Até o tempo? Olho para o mar e conto-o, provavelmente o tempo só serve para ser contado.

Olho para mim e vejo estampado em papel de seda, tão frágil e leve, tão promessa, vejo o fantasma que é você a me assombrar a cada inverno e primavera. Vejo o mar, vejo o nada. Vejo que os navios, qualquer dia destes, irão zarpar.



Beijos,


Suzana


Por Suzana Guimarães, Lily.