Ilustração por

Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Ele era cinza - como deve ser um intróito.

(fotografia por Suzana Guimarães)


Foi denominado monstro só porque era gigante e cinza e pela forma decidida de agir, mas nem sempre usamos as melhores nomeações... Sei que acordou - ou foi revelado, mostrou-se - no meio de uma tarde. Nem sei qual delas, nem a hora precisa. Tudo isso não importa. 

​Vale saber - ou ter a consciência - que ele existe, apareceu, mostou-se e a partir de então nada mais ficou no lugar. Sabe aquelas coisas bonitas que ficam em destaque, imóveis, simpáticas, satisfatórias? (Dentro do melhor dos conformes   -   não que não tivesse existido sempre um certo rumor ao redor - parecendo ou podendo agradar?). Mas, ele se revelou e agitou as coisas à sua volta - ele permaneceu o mesmo, embora poucos saibam - tal qual um terremoto quando passa.

​Objetos inanimados moveram-se, deixaram seus postos! Xícaras, pratos, o lustre pendurado no teto. E, certamente, claro, a relação dele - do monstro - com o mundo que o detinha.​

​O pior, a relação dele com os outros.


Por Suzana Guimarães​

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

ORAÇÃO



(arquivo pessoal de Suzana Guimarães)


Deus, afasta de mim quem mente sobre coisas importantes porque as pequenas eu até relevo. Afasta de mim quem não gosta das minhas palavras porque se eu espetei fundo é porque antes espetaram-me, ou aos meus, e eu não sou anjo ou santo para dar a outra face. Deus, afasta de mim quem não sabe o que quer e do ambicioso em demasia. Afasta de mim quem reclama diariamente do pão que está comendo, do trabalho que tem, da vida que leva, sendo que tudo é resultado de cada passo dado e em sã consciência. Deus afasta de mim quem usa pessoas. Deus dá uma luz, que seja fresta fina na noite escura a passar pelos vãos das portas e janelas fechadas, mas dá porque é nojento ser humano.

Suzana Guimarães


(Publicado anteriormente no Facebook e em meu outro blog - clica aqui!

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Um poema de B. Leonardo, Portugal, 2010.

(arquivo pessoal de Suzana Guimarães)






...


"Fica o tempo que entenderes.

Espalha por aí as tuas bagagens, 

as páginas meio desfolhadas 

as brasas mal ardidas 

nos teus livros mal tratados, 

que tarde ou cedo se haverão de misturar com os meus. 

Fica

dorme onde quiseres, 

no sofá

na cozinha 

na cama onde já tentei adormecer muitas noites,

e entretanto, desisti.

Prefiro as ruas que amanhecem desertas."


Despojo,


Novembro 2010, 20

bL

terça-feira, 6 de outubro de 2015

"Assim, sentados, sentindo o peso de sua cabeça em meu ombro, eu percebi que poderia morrer ali, naquele instante, pois era tudo o que me bastava." 

Palavras de S.

domingo, 4 de outubro de 2015

Poderíamos voltar a nos cumprimentar assim, "Estou encantada!".

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Sobre aquele dia



(imagem, SCG)


Naquela manhã choveu flores em meu carro. Voltei ao supermercado porque havia esquecido de comprar metade da lista. Queria deixar isso bem esclarecido. Não existe acaso. Existe obra. A quem pertence? Não sei. Fiz as compras demoradamente porque bateu cansaço psicológico e até falei para o cara atrás de mim na fila, que carregava uma única coisa, que passasse na minha frente. Ele disse não. Mesmo assim, atrasei o tempo ao colocar as compras no carro como se montasse uma vitrine de loja. Depois bebi uma garrafa de água mineral. Ao sair do estacionamento, preferi o caminho mais longo. Foi aí que virei à direita e vi você.


Eu gostaria apenas de esclarecer para mim mesma, e para isso deixo aqui firmado. Foi a partir daquele momento - e não outro! - que eu passei a sentir ondulações​.


Venho desconhecendo-me. Falei errado o último nome do meu filho para a atendente da farmácia que nos conhece há anos. Ela bem que insistiu, mas eu não dei folga: soletrei inúmeras vezes o segundo nome dele como se fosse o último e finquei o pé. Só depois, bons minutos depois, um raio de luz desenhou no ar seu último nome e eu então voltei à fila. Marquei um compromisso ao telefone. Minutos depois, enviei inúmeras mensagens para a pessoa, confirmando desesperada - e imaginando que ela de nada ainda soubesse - a minha ida. Depois a pessoa questionou aquelas mensagens... eu já havia dito ao telefone que iria...


Sinto ondulações. Eu não esperava reencontrar você às 11h de um dia qualquer, passando a pé, eu, de carro; eu não esperava gritar tanto para você me ouvir, parar o carro, caminhar tão decidida e ficar agora com a lembrança de duas lágrimas penduradas em seus olhos. 


Eu não sabia que anjo anda a pé. Eu não sabia que anjo enfraquece. Eu não sabia que a gente encontra quem a gente tem que encontrar. E, inclusive, reencontra.


Choveu flores naquele dia. Lotei-me de indagações, superstições, e penso estar até tendo alucinações. Mas, eu sei, choveu flores naquele dia.




Suzana Guimarães