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Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Sobre aquele dia



(imagem, SCG)


Naquela manhã choveu flores em meu carro. Voltei ao supermercado porque havia esquecido de comprar metade da lista. Queria deixar isso bem esclarecido. Não existe acaso. Existe obra. A quem pertence? Não sei. Fiz as compras demoradamente porque bateu cansaço psicológico e até falei para o cara atrás de mim na fila, que carregava uma única coisa, que passasse na minha frente. Ele disse não. Mesmo assim, atrasei o tempo ao colocar as compras no carro como se montasse uma vitrine de loja. Depois bebi uma garrafa de água mineral. Ao sair do estacionamento, preferi o caminho mais longo. Foi aí que virei à direita e vi você.


Eu gostaria apenas de esclarecer para mim mesma, e para isso deixo aqui firmado. Foi a partir daquele momento - e não outro! - que eu passei a sentir ondulações​.


Venho desconhecendo-me. Falei errado o último nome do meu filho para a atendente da farmácia que nos conhece há anos. Ela bem que insistiu, mas eu não dei folga: soletrei inúmeras vezes o segundo nome dele como se fosse o último e finquei o pé. Só depois, bons minutos depois, um raio de luz desenhou no ar seu último nome e eu então voltei à fila. Marquei um compromisso ao telefone. Minutos depois, enviei inúmeras mensagens para a pessoa, confirmando desesperada - e imaginando que ela de nada ainda soubesse - a minha ida. Depois a pessoa questionou aquelas mensagens... eu já havia dito ao telefone que iria...


Sinto ondulações. Eu não esperava reencontrar você às 11h de um dia qualquer, passando a pé, eu, de carro; eu não esperava gritar tanto para você me ouvir, parar o carro, caminhar tão decidida e ficar agora com a lembrança de duas lágrimas penduradas em seus olhos. 


Eu não sabia que anjo anda a pé. Eu não sabia que anjo enfraquece. Eu não sabia que a gente encontra quem a gente tem que encontrar. E, inclusive, reencontra.


Choveu flores naquele dia. Lotei-me de indagações, superstições, e penso estar até tendo alucinações. Mas, eu sei, choveu flores naquele dia.




Suzana Guimarães