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Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



sábado, 30 de janeiro de 2016



(arquivo pessoal de Suzana Guimarães)



Los Angeles, 30 de janeiro de 2016.



Querido,


Li, certa vez, que uma carta nos Estados Unidos demorou cerca de sessenta anos para ser entregue, mas um dia, ela chegou ao destinatário. Por isso, envio-lhe esta. 

Não, não estou esperando sua honrosa resposta. Certamente, daqui a sessenta anos, eu estarei em outra dimensão, pois meu caminho, eu já percorri a metade. Agradeço as chuvas de pedras, apesar de viver em um deserto. As pedras, nós já temos, a chuva, prefiro a que realmente água. 

Recebi suas fotos, de todas as suas últimas viagens. Assustei-me com a terceira pessoa que vi em todas elas e que se parece com você, mas não pode sê-lo. Antes, você sabe, eu via duas porque você ora se mostrava doce, ora se mostrava ausente, e eu não gostava dessa última. Eu não suporto ausências e notícias de pessoas desaparecidas. Sim, eu sei, preciso tratar-me disso! Aquele homem doce encantava-me... mas, agora, vejo um cara sem amor no olhar, sem delicadeza, um poema morto, papel picado e amassado... vejo um homem desconfiado, sim, a melhor palavra, melhor que "estranho". 

Quando a gente se encontrou naquele Café, eu falei que você estava "estranho" (perguntei se estava cansado e você alegou gripe), mas não fui feliz ao escolher a palavra, porque eu aprecio a estranheza, tenho vício nela; eu não gosto é do previsível. 

Onde você foi parar? Onde você está? 

Cadê você? Em suas fotos do passado, eu sempre via esperança em seus olhos, sonhos, caminhos, vontade de chegar próximo à alguma estrela, tocar alguma coisa que ainda nem havia sido criada... Hoje, vejo olhos levemente fechados, sem brilho, à espera de alguma tocaia... Em algumas fotografias, por estar ao lado das pessoas que ama, percebo a velha doçura, mas quem se deita em sua cama sozinho à noite é você, não é? A gente não pode ter os amados colados ao corpo, mesmo que sejam nossos anjos...

Descobri meio por acaso que você passou alguns anos tocando violão em bares, compondo letras muito lindas, esperando que alguma coisa o lançasse num golpe só a algum abismo... para que você sentisse o prazer de estar em qualquer lugar, menos em sua eterna zona de conforto.

Li essas músicas, entendi que a gente não retira com facilidade as digitais que os outros deixam em nossas almas. Eu, infelizmente, de nada soube, na época. Eu teria lhe dito que, dos seus noventa medos, um só poderia realmente vir a acontecer...

Foi então que tive pena dos poetas, e lembrei-me daquela frase, "Sou poeta e não aprendi a amar". Tive pena também do poema. Tive pena de você e também de mim, apesar de que eu não sou poeta e nem você. Apesar de que somos apenas duas pessoas que se encontraram em um tranquilo cruzeiro pelo oceano Pacífico e, em uma mesa de jogos, perdemos todo o nosso dinheiro e passamos então a nos odiar, colocando um a culpa no outro. Perdemos nosso tempo e até o juízo, bebemos tequila além da conta, nos jogamos nus na piscina do navio, fizemos muito sexo e fomos parar, presos, na cabine do comandante.
O resto ficou na ressaca...

Eu não fui cúmplice de nada! Você fez tudo o que fez, inclusive foi embora porque você já estava indo.

Essa carta é apenas para lhe dizer - pouco importando em que tempo chegará - que você não tem idade ainda para desistir e se tornar sócio de um restaurante de comidas vegetarianas. Você não deveria matar o artista, o poeta, o sonhador, o tocador de viola só porque a sua mulher morreu naquela curva mal feita que ela mesma fez na estrada. Você não teve culpa, nem no carro estava. Aqueles sonhos "assassinados" se foram, mas outros ainda podem surgir. 

Sou, sim, aquela mulher que você inventou, e, por ser invenção, fico na história, feito assombração. Mas, você eu não conheço mais, nem inventei. Desconheço-o totalmente.

Deixo-lhe essa carta, desejo-lhe uma mulher genuinamente feliz e úmida (e que saiba dirigir!), que lhe estenda a mão e lhe aponte caminhos. 

Mas, antes de tudo, desejo-lhe sua própria ressurreição.


Beijos, querido, beijos!

Lily


Por Suzana Guimarães